*Por Raquel Rolnik
São evidentes os sinais de que estamos vivendo uma emergência habitacional: aumenta a população de rua, estimada por um estudo do IPEA em 222.000 pessoas no país; aumenta o número de novas ocupações de terrenos e prédios, já que muitos brasileiros não podem mais pagar por moradia; e, a despeito de apelos do Ministério Público e da ONU, o Brasil continua removendo e despejando milhares de famílias de suas casas, mesmo durante a pandemia.
Não se tem dados precisos da extensão e natureza desta emergência (e nem um esforço governamental para dimensioná-la e assim estabelecer estratégias de enfrentamento). Em uma situação na qual o desemprego aumenta e a renda das famílias diminui, os imóveis tiveram alta de preço — quase 1% acima da inflação no semestre neste contexto da pandemia, segundo Índice Fipezap. Neste cenário, qual é então a resposta e a política do governo federal?
Com a carta na manga de um “novo” programa habitacional em discussão desde o ano passado, o Casa Verde e Amarela, o governo vê o aceleramento da crise, mas não tem pressa. Interrompeu o único programa que atendia as faixas de renda mais baixas com recursos a fundo perdido, e se move na direção de pensar a política habitacional como política de financiamento, pensada a partir da lógica da rentabilidade dos fundos, e não como política social de fato, de atendimento a necessidades urgentes. Claramente, o que está em curso não é um plano de redução da crise habitacional visando a segurança e a qualidade de vida das famílias, mas sim um malabarismo em busca da rentabilidade, intensificando o processo de financeirização da moradia.
No último dia 31, foram divulgadas mudanças no programa Minha Casa Minha Vida Faixa 1, que não contratou nenhum empreendimento novo nesta gestão. O que se anunciou não foi a contratação de novas unidades habitacionais, mas sim novas regras de seleção dos contemplados com recursos do Fundo de Arrendamento Residencial (FAR), introduzindo critérios unificados de distribuição das unidades para além do critério da renda máxima familiar e presença no Cadastro Único, que já existiam, na prática limitando a autonomia dos municípios na definição dos beneficiários. O programa Casa Verde e Amarela , que ainda não saiu do papel, elimina a modalidade da Faixa 1. Para esta faixa de renda, evidentemente a prioritária e majoritária, a proposta é regularização fundiária e melhorias habitacionais. A “política” (leia-se o financiamento utilizando o FGTS), começa com a chamada faixa 1,5 e sempre inclui o pagamento de juros. Enquanto isso, a Caixa Econômica Federal anunciou, na segunda-feira (3), o aumento de sua participação na home equity, que é uma modalidade de crédito na qual é possível tomar empréstimos e dar um imóvel como garantia. A famosa hipoteca.
A aposta maior do governo federal nesta área é a chamada securitização, aquela que acabou gerando a crise financeiro-hipotecária nos Estados Unidos em 2008. Securitização é transformar a moradia em ativo financeiro. Os agentes financeiros, bancos, que originam os empréstimos através de crédito hipotecário, podem vender a expectativa de recebimento das prestações das casas por parte dos mutuários para outros agentes financeiros, intensificando a quantidade de recursos circulando no mercado financeiro. E mais recursos circulando no mercado financeiro — já vimos este filme no Brasil e no mundo — vai significar um novo ciclo de aumento de preços de terrenos e imóveis, o que, diante da queda da renda das famílias, culminará em um aumento das necessidades habitacionais.
Em meio às crises do coronavírus e pós-coronavírus, o governo não parece minimamente preocupado com a moradia como direito, essencial para a proteção da vida.
*Raquel Rolnik é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.
Comments are closed for this post.