Raquel Rolnik, Guilherme Lobo Pecoral e Giovanna Milano*
Em pleno mês que visa dar visibilidade e valorizar à cultura afro-brasileira e a luta contra o racismo, a Iyalorixá do Ilê Asé Odé Ibualamo e liderança comunitária Mãe Zana de Odé tem lutado pela preservação do espaço sagrado onde está localizado um terreiro ameaçado de remoção pela prefeitura de Carapicuíba (SP). A justificativa usada pelas autoridades municipais é a obra de canalização do Córrego do Cadaval que o margeia. Fundado pelo seu avô Babalorixá João Canavieiras, Zana é a terceira Iyalorixá, como é chamada a mãe de santo na tradição de matriz africana.
Mãe Caçailê, conhecida como Mãe Nega, chegou à cidade da Região Metropolitana de São Paulo na década de 1980, instalando-se em uma comunidade onde havia um pequeno rio e muito verde. Como em qualquer local divino, não foi por acaso: a presença do riacho, da vegetação abundante, entre outros elementos naturais, foi determinante para a escolha dos orixás. Assim como em outros terreiros, e como a maior parte do território popular brasileiro, a compra da área de 200 m² não passou por registros e escrituras.
Quando Mãe Nega faleceu, sua filha Zana manteve o Ilê e suas práticas tradicionais de matriz africana, atravessando a transformação do bairro, a poluição crescente do rio e a ocupação de suas margens, onde seria a área de preservação permanente. Neste momento, a obra de canalização, promovida pela Prefeitura de Carapicuíba, passa literalmente em cima do terreiro e nenhum diálogo com os promotores da obra, muito menos o reconhecimento da importância histórica e sagrada do Ilê, teve lugar.
Como em inúmeras outras situações deste tipo, a obra pública que atravessa o bairro, destruindo dezenas de moradias, dificilmente garante o acesso a uma nova moradia adequada aos desabrigados, alegando a falta de documentação. Quando muito, uma carta de crédito é oferecida pela CDHU, o que significa que não há compensações monetárias pelo que as pessoas já investiram. É oferecido uma dívida para comprar outra casa e começar tudo de novo.
Pela janela do Ilê Asé Odé Ibualamo já pode se ver que as obras de canalização do córrego promovidas pela Prefeitura de Carapicuíba já estão demolindo as edificações em volta, afetando inclusive a estrutura do terreiro
Neste caso, para além destas questões, soma-se o fato de que o terreiro, além de ser local de moradia de Mãe Zana de Odé e de outros membros de axé, como funcionam os terreiros onde Iyalorixás e filhos habitam, compartilhando o cotidiano de cuidado da comunidade, do território e do sagrado. Trata-se de patrimônio cultural, de lócus de memória ancestral, de significados e valores do espaço que vão além da materialidade da casa, mas que a incluem.
Já passou da hora de se reconhecer formas de ocupação do espaço que tem significados para além da moradia e das dimensões econômicas, e a permanência do Ilê Asé Odé Ibualamo pode ser um excelente passo para consolidarmos este caminho. O reconhecimento e a garantia de permanência dos territórios tradicionais nas cidades conectam-se a um dever de reparação frente às violações promovidas pelo racismo estrutural na formação social brasileira, promovendo o direito à preservação da memória e de construção de futuros mais igualitários e justos no espaço urbano.
* Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade; Guilherme Lobo Pecoral é estudante de direito na USP e pesquisador do Observatório de Remoções; e Giovanna Milano é professora de direito urbanístico do Instituto das Cidades (Unifesp) e pesquisadora do Grupo Transborda e do Observatório de Remoções.
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