Paula Freire Santoro e Raquel Rolnik*
Infelizmente não temos nada a comemorar na semana que marca dois anos do assassinato de Marina Kohler Harkot, quando voltava para casa de bicicleta e foi atropelada por José Maria Costa Júnior, que não prestou socorro e fugiu do local do crime, em São Paulo. O motorista continua livre e, ainda que esteja proibido de dirigir, recuperou seu carro. No ano passado, foi decidido que o caso seria levado a Júri Popular, mas ele recorreu. A decisão ainda está sendo julgada em um processo que não se conclui e abre novas questões. Como mostrar à sociedade que é preciso uma cidade mais humana, feita para as pessoas, superando a impunidade dos responsáveis por acidentes e mortes no trânsito brasileiro? Como mostrar que #nãofoiacidente, que não é um caso isolado, mas um resultado do nosso modelo de mobilidade urbana?
Nesses dois anos de angústia, os trabalhos em torno das pautas que Marina investigava se ampliaram e foram apresentados na Ocupação Pedale como Marina, evento realizado nos dias 07 e 08 de novembro na sala que leva o seu nome, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, e no site do movimento.
Se ciclovias têm ganhado cada vez mais espaço nos municípios brasileiros, ainda estamos muito longe de ter a bicicleta não só como lazer, mas como parte integrante dos sistemas de mobilidade cotidiana. Os atos e as manifestações que ocorreram no dia 06 de novembro, como a Pedalada que abriu a Ocupação, revisitando o memorial Marina Harkot na Avenida Paulo VI, em São Paulo, e em vários lugares do país, reiteram este tema, assim como denunciam a impunidade.
Na celebração e no luto dessa morte, familiares, amigos, cicloativistas e pesquisadores, articulados em torno do Pedale como Marina e junto ao Instituto Multiplicidade Mobilidade Urbana, lançaram o Observatório da Impunidade no Trânsito Brasileiro. Seu objetivo é chamar a atenção para as políticas públicas, reunir dados sobre os atropelamentos e mortes de ciclistas, e auxiliar as famílias, que ficam desorientadas diante desses casos, além de expor a impunidade e a dificuldade na condenação dos responsáveis pela a violência no trânsito. Hoje, no Brasil, três pessoas morrem por hora vítimas do trânsito. Mas não há estatísticas sobre a imensa impunidade no julgamento dos condutores. Os processos judiciais são extremamente complexos e morosos e, na maioria das vezes, terminam sem a punição adequada dos infratores.
A Ocupação Pedale como Marina concluiu sua primeira edição com um debate, que Marina certamente estaria fazendo neste momento, sobre “Política, Eleições e Representação Feminina”, com Jacqueline Moraes Teixeira, professora da Universidade de Brasília (UnB). Assunto instigante que nos lembra que os bloqueios e limites da presença das mulheres ciclistas no trânsito é apenas uma das pontas de um enorme desafio representado pela ausência das mulheres e dimensões feministas no processo decisório sobre as cidades e o país. Ainda, Felipe Burato, marido da Marina Harkot, homenageou-a e convidou os presentes a seguir nesta luta.
Assim como diz o lema do evento, queremos que o exemplo de Marina e de tantas outras pessoas inspire a uma vida mais saudável, menos centrada na cultura do automóvel, da velocidade e, consequentemente, extinga a mutilação e morte de pedestres, ciclistas, motociclistas, passageiros, inclusive dos próprios motoristas.
É fundamental pensar em ações muito mais decisivas de educação no trânsito para que a gente possa conviver e entender que o trânsito não é um lugar de guerra e de morte, e pode ser um lugar de convivência, de paz, de possibilidade de usufruto da cidade para todos.
* Paula Freire Santoro e Raquel Rolnik são professoras na FAUUSP e coordenadoras do LabCidade.
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