Por Paula Freire Santoro*
Três acontecimentos me fizeram escrever este texto: uma banca de doutorado sobre “fissurar o espaço público”, apresentada pelo Tarcísio Gontijo Cunha (UFMG); o veto do Bolsonaro ao Projeto de Lei 488/2021, conhecido como Lei Padre Júlio Lancellotti; e a minha participação recente em um podcast sobre “arquitetura hostil”.
Nesta ano, fui entrevistada em um podcast sobre “arquitetura hostil”. O tema foi ganhando força pela recorrência, especialmente depois que o Padre Júlio Lancelotti marretou blocos de concreto instalados pela Prefeitura de São Paulo sob um viaduto na Zona Leste da cidade. Mas a prática deste “urbanismo de exclusão” já vinha acontecendo há décadas em São Paulo e em vários lugares, como Cascavel, Curitiba, Juiz de Fora, João Pessoa e Recife. Nesta semana, a tese de Tarcísio Gontijo Cunha mostrou que também em Belo Horizonte. Ele trouxe imagens de bloqueios (anteparos, pontas), mas também outras de espaços para deitar, sentar e plantar, apropriados, em registros que podem ser vistos no Pinterest do Dicotomias Urbanas ou no Movimento Boa Praça, em várias frentes que querem promover o urbanismo da inclusão.
Denominada como “urbanismo antimendigo”, “arquitetura da exclusão” (architectural exclusion, em inglês), “arquitetura hostil”, chamamos aqui de “urbanismo da exclusão”. Esta, consiste em discriminar e segregar certos corpos, certos povos, certos indivíduos, frequentemente pobres, negros, imigrantes, entre outros não reconhecidos na sua existência, impedindo-os de permanecer nos espaços públicos.
Fisicamente são muros, cercas, bancos que não permitem que um corpo se deite (com pinos), e mais recentemente pedras cimentadas no chão. Formas limitadoras – visuais, físicas e sociais – conformam essa arquitetura hostil. Mas também é a cidade que é controlada por câmeras, pelos sistemas de vigilância, por controle de entrada e saída, e não apenas pelas formas físicas (muros, etc). O controle também se dá de forma tácita, quando há uma distinção entre “iguais” e “outros”, cuja humanidade não é reconhecida pelo grupo dominante, em geral branco, de renda mais alta, no Brasil.
São o complemento das ações de segregação em função do medo da violência, do medo do outro, que amplia a intolerância. A sensação de insegurança urbana condiciona a experiência do espaço urbano. Os mais ricos, brancos, de elite, procuram se fechar entre “iguais” e produzem “muros” e “extramuros”, espaços áridos, impermeáveis, não acolhedores à escala humana.
Criam desumanidades, empurram estes corpos para situações de violência e desobrigam os que não os reconhecem, de qualquer responsabilidade ética sobre estes corpos. Desumanidades cada vez mais constantes, movidas pelo poder público e por privados. Privados nos condomínios, shoppings, etc. Públicos nos projetos de transformação urbana que associam aos lugares do consumo, editais de privatização ou de projetos como este que o Padre Lancellotti começou a destruir. E cada vez mais numerosos os excluídos, com o agravamento da crise econômica e habitacional, que aumentou a população que vive nas ruas.
De uma mobilização ética, que quer promover o urbanismo da inclusão, nasceu o Projeto de Lei 488/2021, conhecido como Padre Júlio Lancellotti, com uma proposta muito simples de alterar o Estatuto da Cidade, para que a política urbana nas cidades tenha como diretriz geral: promover o “conforto, abrigo, descanso, bem-estar e acessibilidade na fruição dos espaços livres de uso público, de seu mobiliário e de suas interfaces com os espaços de uso privado, vedado o emprego de materiais, estruturas, equipamentos e técnicas de arquitetura hostil que tenham como objetivo ou resultado o afastamento de pessoas em situação de rua, idosos, jovens e outros segmentos da população”.
Aprovado pelos deputados, mas… no apagar das luzes, já no aviso prévio, o governo federal, sem qualquer justificativa plausível, veta!?!? A justificativa era que fere a competência municipal e que a expressão “técnicas construtivas hostis” poderia criar insegurança jurídica. Mas senadores e deputados derrubaram o veto! Então, a tramitação da lei segue, embora ainda continuemos em uma guerra contra determinados corpos na cidade. E algumas cidades têm aprovado leis semelhantes em seus municípios, numa luta por inclusão, deixando espaços para sentar em cada casa, como os da foto da tese do Tarcísio que abre este texto. Pois, como coloca Raquel Rolnik, “a lei Júlio Lancelotti nada mais faz do que afirmar o óbvio, que o espaço público não pode ser um espaço para praticar a rejeição”.
* Paula Freire Santoro é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade.
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