* Por Laisa Stroher, Carolina Heldt, Stela Da Dalt, Débora Ungaretti, Paula Freire Santoro e Amanda Silber Bleich
Dia 13 de janeiro, a Prefeitura de São Paulo lançou em consulta pública virtual a minuta de lei da Revisão Intermediária do Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014. Já discutimos o estímulo à produção de garagens, o uso de carro em áreas bem servidas de transporte público e o retrocesso que essa medida representa no combate à lógica rodoviarista da cidade. Aqui levantaremos os problemas desta minuta em relação aos processos de transformação urbana.
O PDE de 2014 definiu que os instrumentos para promover transformação de áreas da cidade (ou projetos urbanos) deveriam ser escolhidos por meio de um Projeto de Intervenção Urbana (PIU) (saiba o que são os Projetos de Intervenção Urbana). Em tese, o processo de elaboração de um PIU deveria definir primeiro o que se quer transformar, em (1) um processo democrático e participativo, aumentando a transparência e a democratização na elaboração de propostas; e (2) a partir de estudos técnicos prévios (urbanísticos, ambientais, econômicos) que meçam seus impactos e venham a evitá-los ou controlá-los. Esse processo, ao final, serviria de base para uma proposta dos mecanismos de gestão e financiamento da implantação de um dado projeto urbano, como uma Operação Urbana Consorciada, uma Área de Intervenção Urbana ou outros.
De lá pra cá, acumularam-se críticas à sua elaboração, dentre elas algumas apontam que o PIU vem sendo utilizado como forma de driblar as exigências legais requeridas para mecanismos mais antigos, como as Operações Urbanas Consorciadas (OUCs), para a qual é exigida a realização de estudos e relatórios de impacto ambiental (EIA-RIMA), e aos mecanismos de gestão democrática, como os conselhos gestores que realizam a fiscalização, gestão e controle social da implementação dos projetos urbanos. Uma vez que não se enquadram nos mecanismos da OUCs, os PIUs ainda têm proposto, de forma genérica, outras formas de financiamento da transformação urbana, utilizando concessões e parcerias público-privadas.
Também foi denunciada a falta de clareza do interesse público que motive a proposição de um novo PIU. Atualmente são 26 PIUs em curso, e que já chegaram a haver 40 iniciativas discutidas simultaneamente. Estamos assistindo à constituição de uma fábrica discricionária de projetos urbanos, sem transparência nos critérios que os motivaram ou levaram à priorização de um PIU em uma localidade em relação à outra.
A minuta, ao invés de aprimorar os PIUs e oferecer soluções para as críticas, aprofunda o grau de generalidade e flexibilidade que estes trazem, pavimentando suas fragilidades e aplicação questionável.
Mudança de nomenclatura para evitar realização de estudos de impacto ambiental e vizinhança (EIA-RIMA e EIV)
A primeira proposta da minuta que salta aos olhos é a mudança em sua denominação, alterando a palavra Projeto para Plano, tornando-se Plano de Intervenção Urbana. Se aprovada, essa mudança irá consolidar o posicionamento da Prefeitura nas ações civis públicas do PIU Jurubatuba, PIU Pinheiros e PIU Setor Central. Nessas disputas judiciais, se discute a necessidade ou não de realizar estudos de impacto ambiental em PIUs. Estes estudos têm, entre seus objetivos, o intuito de avaliar a pertinência do novo adensamento construtivo e populacional proposto pelo futuro projeto urbano, seus impactos, e evitá-los ou propor medidas compensatórias. Na ação civil pública que solicitou a suspensão da tramitação do PIU Setor Central, ajuizada pelo Ministério Público (MP) em agosto de 2021, alegou-se que a ausência de Estudo de Impacto Ambiental (EIA-RIMA) estaria contrariando a Resolução CONAMA nº 01/1986, que prevê a obrigatoriedade da elaboração de EIA-RIMA para projetos urbanísticos com mais de 100 hectares.
Na ação, o município de São Paulo alegou publicamente “que o PIU, ao contrário do que seu próprio nome indica, não seria um projeto de intervenção urbana (ou um projeto urbanístico), mas um plano urbano”, o que justificaria a não realização do estudo ambiental. Essa alteração de nomenclatura parece ser um meio de emplacar essa justificativa para se esquivar da elaboração dos estudos ambientais, o que é ainda mais problemático tendo em vista o cenário de emergência climática, e a realidade geomorfológica dos territórios prioritários para implantação de PIUs — localizados, em sua maioria, em áreas de várzea —, demandando, portanto, cuidados especiais no que tange à verticalização e impermeabilização do solo.
Mesmo o EIA-RIMA sendo muitas vezes limitado para discutir impactos urbanos, enquanto o Estudo de Impacto de Vizinhança não está regulamentado em São Paulo, este parece ser o procedimento existente para medi-los. E em algumas operações urbanas consorciadas em São Paulo, o EIA-RIMA foi um espaço importante para discutir os impactos sociais do projeto.
Deixa ainda mais genérico o interesse coletivo que justificaria iniciar um PIU e enfraquece o controle social
A minuta cria duas categorias de PIU, os PIUs de Ordenamento e Reestruturação Territorial, e os PIUs de Zonas de Ocupação Especial (ZOE), trazendo diferentes conceitos e trâmites para cada uma delas. Em relação ao PIU de Reestruturação Territorial chamou a atenção ao fato de que definiu-se que “O resultado final dos estudos técnicos produzidos por meio do PIU – Ordenamento e Reestruturação Territorial, assegurada a participação social, deverão indicar os objetivos prioritários da intervenção (Art.136, § 1º, grifo nosso)”.
No texto original constava, de forma genérica, que o PIU deveria indicar os objetivos prioritários para a transformação desejada. Essa redação dá continuidade para a realização de propostas de PIUs iniciadas por entes privados sem que haja justificativa clara dos objetivos prioritários e do interesse público que os motivariam.
Ainda que esses objetivos possam ser calibrados ao longo do processo do PIU, faz sentido desencadear todo um processo trabalhoso e custoso ao poder público, sem que haja uma justificativa que apresente o interesse público em realizar as intervenções?
Esta questão é relevante, especialmente ao considerarmos o histórico recente dos mais variados PIUs que receberam inúmeras contestações sobre seu caráter, se era de fato público, pois careciam de mais elementos definidores de seu programa e destinação. Ainda, uma vez que ocorre o pedido de realização de um PIU pela iniciativa privada, quem desenvolve os estudos e conduz o processo é a SP Urbanismo (empresa pública municipal), que é remunerada com recursos captados do Fundo de Desenvolvimento Urbano (Fundurb).
Mesmo que o PIU seja provocado pela iniciativa privada — que, como dissemos, pela atual legislação precisa apresentar uma documentação composta de estudos e documentos que comprovem a pertinência do projeto e a existência de interesse público — sua elaboração custa (bastante) aos cofres públicos. O Poder Público tem utilizado recursos milionários do Fundurb para desenvolver projetos que partem e beneficiam o privado, e a mudança no texto facilita ainda mais para os proponentes, que não precisarão justificar os objetivos prioritários.
Sobre os PIUs de Zonas de Ocupação Específicas (ZOEs), são necessários para determinar os parâmetros de uso e ocupação do solo nas ZOEs, que incidem, por exemplo, sobre equipamentos urbanos como o Pacaembu, o Ibirapuera, entre outros, cujos parâmetros não foram definidos no zoneamento. A minuta em debate coloca que os estudos de PIU de ZOE devem dar estes parâmetros, mas não especificam em que momento eles devem aparecer ao longo do processo do PIU. Esta indefinição tem ampliado as indecisões sobre alguns destes PIUs que são debatidos na Câmara Técnica de Legislação Urbanística (CTLU).
Ainda, se o processo democrático em todas as etapas dos PIUs já era mal regulado, quando ocorria, se dava principalmente através de plataformas digitais, de forma muito rápida e variando de um PIU para outro (sem uniformidade nos processos), a minuta em debate piorou a condição da participação social democrática. Em relação ao PIU de ZOE só há previsão de participação na fase de elaboração dos estudos técnicos, sem menção à participação e/ou gestão social uma vez publicado o decreto que regulamenta o PIU.
A questão preocupa, principalmente, devido ao fato dos PIUs de ZOE vincularem-se normalmente a processos de concessão ou privatização de espaços e serviços públicos, a exemplo do PIU Pacaembu e PIU Anhembi. Como já abordamos anteriormente, para o caso do Pacaembu e outras PPPs, a transparência da implantação desses contratos é muito insuficiente, deixando a gestão dos nossos bens comuns – terrenos, imóveis, equipamentos públicos, serviços, direitos construtivos – passar ao largo do controle social.
Dessa forma, a revisão proposta parece mais consolidar desvios – da elaboração de estudos de impacto, ou na participação social, ou na garantia de interesse público – que reforçam os problemas da prática dos PIUs em curso, sem enfrentar os gargalos já há tempos apontados na trajetória do debate e da implantação dos projetos urbanos em São Paulo.
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Laisa Stroher é professora da FAU UFRJ, pós-doutoranda na FAUUSP, pesquisadora do LabCidade, do Perifau da UFRJ e do LEPUR da UFABC; Carolina Heldt d’Almeida é professora da Escola da Cidade e do IFSP, e doutora pelo IAU-USP; Stela Da Dalt é mestranda pelo IAU-USP, com formação em arquitetura e urbanismo pela FAUUSP, e conselheira participativa municipal de São Paulo pela subprefeitura da Sé; Débora Ungaretti é doutoranda na FAUUSP e pesquisadora no LabCidade; Paula Freire Santoro é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade; Amanda Silber Bleich é urbanista e arquiteta pela Escola da Cidade, graduanda em Gestão de Políticas Públicas pela EACH-USP e pesquisadora do LabCidade.
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