Por Benedito Barbosa, Francisco Comaru e Leonardo Foletto*
Sexta-feira, 22 de março, início da tarde, após um longo e complicado processo, a juíza Maria Gabriella Pavlópoulos Spaolonzi da 13a Vara da Fazenda Pública em São Paulo, determinou a remoção das centenas de famílias da Comunidade da Favela do Cimento, na Radial Leste, para domingo de manhã, 24 de março de 2019, 12 horas antes, enormes labaredas de um incêndio varreram a favela do mapa, destruindo dezenas de barracos, entre o Viaduto Bresser e o Metrô Belém.
No nosso entendimento, a decisão judicial, não privilegiou o atendimento habitacional, nem a participação ativa da Secretaria de Habitação, tampouco pautou-se pelas diretrizes da Resolução 10/2018 do Conselho Nacional de Direitos Humanos, e não considerou as posições históricas do Movimento da População em Situação de Rua, da Pastoral do Povo da Rua e das Entidades que atuam junto a este segmento, que tem posicionado claramente contra os procedimentos de tutela do Estado, em detrimento da autonomia desta população e vem defendendo prioritariamente seu direito à moradia como a principal porta de saída da condição de extrema vulnerabilidade.
Com a expedição da sentença, o poder público priorizou a mobilização de forças policiais em abundância, da Guarda Civil Metropolitana e Polícia Militar. A população vulnerável, espoliada e excluída (que inclui inúmeras mulheres, crianças de todas as idades, entre recém nascidos, afrodescendentes, idosos e jovens – todos sem-teto e de baixíssima renda), demonstrou grande insatisfação com o tratamento que recebeu, segundo relatos de moradores, a falta de estrutura da prefeitura no atendimento aos atingidos pela remoção, no sábado, dia 23, aumentou a tensão no local e precipitou a ações de violência por parte da GCM e da Polícia Militar.
É preciso destacar que a população extremamente vulnerável que reside nos improvisados barracos em margens de avenidas e jovens favelas e ocupações precisam de atendimento habitacional. Boa parte dos moradores da Comunidade do Cimento que residiam com suas famílias próximo à Avenida Radial Leste estavam organizados em núcleos familiares. O atendimento que se encontra nos centros de temporários de acolhida (tradicionalmente conhecidos como albergues), com controle de acesso e limitação no direito de ir e vir, por sua vez, têm sido criticados por diversas razões, entre as quais, por não adequar-se, respeitando, por exemplo, a necessidade dos membros de uma família permanecerem juntos. As pessoas e as famílias demandam moradia digna e segura, como previsto na nossa constituição.
A tomada de conhecimento sobre a reintegração de posse que ocorreria nas primeiras horas do domingo, a violência real e simbólica impressa pela presença da GCM e da PM na véspera da reintegração, “ensaiando o preparo” para a remoção, somados à insuficiência e inadequação do atendimento de assistência social oferecido pela prefeitura, certamente constituíram-se ingredientes para ampliar a insatisfação dos moradores, num ambiente com histórico de frustrações, violações e violências acumuladas e sistemáticas, inclusive, de caráter institucional.
Para aumentar o drama daquela noite, um incêndio inesperado toma de assalto as moradias, boa parte delas, construídas com materiais inflamáveis e inadequados – o fogo alastra-se e marca mais um episódio triste e injusto para os pobres e sem-teto de nossa cidade, que perdem muito do pouco que possuem numa única noite. Um homem gravemente ferido pela ação do incêndio perdeu a vida.
Segundo levantamento dos próprios moradores publicado pela Ponte Jornalismo, os cerca de 200 barracos de madeira abrigavam aproximadamente 500 pessoas. Desse total, 150 crianças, 25 idosos, seis pessoas com deficiências físicas e seis mulheres gestantes. Durante a tarde do último domingo, dois caminhões vazios estiveram na ocupação para levar os pertences dos moradores para o depósito municipal, mas partiram antes das 17h, deixando centenas de moradores sem ter como retirar seus pertences do local.
A maior parte da renda das famílias da Comunidade tem origem nos pagamentos entre R$ 90 e R$ 300 do Bolsa Família, programa do governo federal que auxilia o dia a dia de famílias muito pobres. Aqueles que conseguiram trabalho são, em sua maioria, autônomos, como trabalhadores em eventos, carroceiros, pintores e vendedores ambulantes – formam o precariado que alia os mais baixos níveis de remuneração às condições mais precárias de trabalho. “A Prefeitura não nos ofereceu nada. A não ser tiro, porrada e bomba”, afirmou o vitrinista José Carlos dos Santos, 47 anos à reportagem da Ponte. “Não tem nenhum familiar deles que mora aqui. Para eles é fácil. Eles têm todas as armas, tratores, escudos e spray de pimenta”, finalizou.
O relato abaixo do advogado Benedito Barbosa, colaborador do Observatório de Remoções, que esteve no local na noite do incêndio, dá mais detalhes do que ocorreu:
“O cenário lá é como se estivesse ocorrido uma guerra, com muita tristeza e desolação: uma tragédia. centenas de pessoas perderam suas casas, muitas ainda estão espalhadas pela região da Mooca, do Centro ou foram acolhidas em ocupações da Região. Parte das famílias removidas, vítimas do incêndio e da desocupação forçada, está se alojando como pode em um galpão na Rua do Hipódromo. Houve relatos de agressão da polícia militar, diversos moradores mostraram marcas pelo corpo das pancadas de cassetetes e balas de borracha. As pessoas perderam muita coisa, na verdade, quase tudo, muitos só ficaram com as roupas do corpo. No galpão da Rua Hipódromo tudo é muito precário, mas por hora parece ser a única alternativa, para quem não tem onde morar e a perspectiva é rua. As famílias no Galpão estão em estado de choque e em total abandono. No local do incêndio, a prefeitura, de forma higienista, com diversos caminhões, se apressava em remover tudo que podia”. Uma moradora com sua nenê de 4 meses no colo desabafou na manhã de domingo, enquanto lembrava e relatava tudo que havia ocorrido: “pobre é tratado que nem lixo”.
Hoje, dia 26 de março de 2019, infelizmente, as famílias que estão Galpão da Rua do Hipódromo no 1000, receberam um mandado de reintegração de posse com medida liminar, processo no 1020683-71.2019.8.26.0100, 34a Vara Cível – Foro Central Cível, que em tese pode ser cumprida a qualquer momento, o que torna iminente mais uma vez, o risco remoção forçada, dando continuidade a este ciclo de violência permanente e sistemática contra os pobres na cidade de São Paulo.
Abaixo, um vídeo produzido pelo Brasil de Fato (Pedro Aguiar e Lu Sudré) traz o relato de moradores relatando a violência encontrada na desocupação.
* Advogado, membro do UMM/GasparGarcia/CMP/LabJuta/Pastoral da Moradia; Professor da UFABC, membro da coordenação do LabJuta, Observatório de Remoções e Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos; jornalista e coordenador de comunicação do LabCidade;
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