Por Aluízio Marinho e Tamara Neder Collier *
O coronavírus tem causado inúmeras preocupações na população de São Paulo, muitas pessoas estão se isolando dentro de casa – de forma correta, diga-se de passagem – para evitar um aumento rápido da covid-19, que levaria o sistema de saúde a um colapso. Ao mesmo tempo, muitos têm chamado atenção para a situação daqueles mais vulneráveis, como é o caso das pessoas que se concentram na região da Luz/Campos Elíseos, no fluxo da Cracolândia.
Entretanto, essa preocupação não pode se limitar aos momentos de pandemia. O caso da Cracolândia em São Paulo – assim como o da maioria das favelas brasileiras – é mais um que demonstra o já reconhecido fracasso da Guerra às Drogas. Essa guerra tem justificado uma crescente violência nesse território, somada a táticas de “sufocamento” dos usuários, como a do fechamento de equipamentos de cuidado e assistência social e a abertura de serviços semelhantes em outras regiões da cidade, ambas com o objetivo de forçar o deslocamento dessas pessoas para outros territórios. As táticas de “sufocamento” dos usuários não só tem falhado no sentido de deslocamento da população ou esvaziamento da Cracolândia como, de 2017 para cá, o número de pessoas que se concentram no chamado “fluxo” aumentou.
A pandemia causada pelo coronavírus expõe ainda mais as contradições das políticas em curso no território da Luz/Campos Elíseos. Os hóteis sociais, por exemplo, são uma alternativa viável de cuidado e garantia de direitos sociais mais amplos, como o direito à moradia. O cadastro e acompanhamento social da população que frequenta o fluxo em hotéis sociais, implementados a partir de 2013, são também uma solução possível para garantir maior proteção a essa população. Com a última mudança de governo municipal, ambas alternativas foram descontinuadas a partir de 2017, sendo que ao menos três delas foram interrompidas de maneira abrupta e não planejada pela atual gestão municipal.
Embora haviam problemas na gestão e manutenção desses hóteis, o poder público não poderia ter interrompido esses serviços sem um estudo mais detalhado de cada caso e a oferta de alternativas que dessem conta das distintas realidades desses indivíduos.
Assim como retomar os convênios com hotéis, outras medidas emergenciais precisam ser adotadas para conter a transmissão do vírus e assim proteger toda a cidade. Mas é preciso ir além. Recentemente, o Fórum Aberto Mundaréu da Luz elaborou uma carta aberta com uma série de recomendações de curto e médio prazo ao poder público. Destacamos a proposta das moradias terapêuticas – locais que integram a habitação e a assistência, além de ser um local para dormir – como exemplo de um leque de atividades de cuidado, redução de danos e até mesmo do uso seguro de substâncias psicoativas que podem constituir um serviço de atenção integral à população em situação de rua e usuária de substâncias psicoativas, em sua maioria, álcool e crack.
Um problema complexo como esse exige propostas ousadas e que questionem “verdades absolutas”. Experiências internacionais, como o “housing first”, nos mostram que a oferta de habitação casada a uma outra política de drogas – pautada pela redução de danos e não pela abstinência e criminalização – nos indicam caminhos para transformar a realidade da Cracolândia paulista, bem como outras cenas de uso de drogas. Essa estratégia de cuidado, que já é amplamente usada na construção de políticas públicas para a população em situação de rua nos países do Norte global, tem como paradigma a baixa exigência: entende-se que todo cidadão tem direito ao acesso às políticas sociais sem que seja exigido dele a abstinência no uso de psicoativos ou a adoção de determinados comportamentos sociais. O beneficiários desse tipo de programa tem acesso à moradia, assistência social e saúde sem ter a questão do uso de drogas como aspecto central em seu processo de reinserção social, numa aposta de que a organização da vida social muda a relação desse sujeito com o uso de substâncias psicoativas.
Nesse sentido, vemos que para além da construção de estratégias emergenciais para a prevenção da pandemia, a região da Luz coloca o desafio de construção de uma política pública que consolide os direitos humanos da população em situação de rua do centro de São Paulo.
A situação atual é de abandono, uma vez que os serviços de saúde e assistência, bem como sua equipe de profissionais, não têm condições adequadas de atender essa população no caso de contágio pelo coronavírus. Reflexo do fracasso das políticas de guerra às drogas, esse quadro está sendo explorado de forma perversa por parte da mídia para justificar a necessidade de realizar a internação forçada dos usuários, o que geraria uma convulsão social que traria ainda mais problemas para esses sujeitos e para a cidade. Permanecendo precária a situação de quem presta assistência social na região central, será a população de rua a primeira a pagar com sua vida a ausência de um Estado que garanta proteção e direitos a todos os seus cidadãos.
* Doutorando em Planejamento e Gestão do Território na UFABC, pesquisador do LabCidade;
Assistente Social, mestranda em Serviço Social do Programa de Pós Graduação em Serviço Social (PUC-SP).
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