Foto: Cut.org.br

Por Larissa Gdynia Lacerda, Marina Kohler Harkot e Paula Freire Santoro *

No dia 26 de março, um mês após a confirmação do primeiro caso de coronavírus em São Paulo, o Hospital Pérola Byington, referência na realização do aborto legal no Brasil, começou a suspender consultas e procedimentos relativos à interrupção da gravidez nos casos previstos em lei – estupro, risco à vida da mulher e anencefalia do feto – para funcionar como um local de triagem de pessoas com gripe. A medida não se estendia a todos os hospitais que fazem aborto legal) e foi denunciada por pacientes e coletivos feministas, escancarando a inaptidão com a qual os governos estão lidando com a crise, aprofundando violências históricas e estruturais a qual estão submetidas as mulheres. O atendimento na última segunda (30 de março) voltou a funcionar, depois de pressão do Ministério Público e da Defensoria Pública.

Mas qual é a explicação para desmontar os avanços legais e institucionais que conquistaram uma pequena, mas importante, rede protetiva pública para enfrentar a violência  estrutural de gênero, que tem a criminalização do aborto como um de seus símbolos mais fortes? Parece óbvio que, enquanto durar a pandemia não vão cessar os casos de gravidez resultantes de estupros, nem mesmo aquelas que colocam a vida da mulher em risco ou cujos fetos sofrem de anencefalia. Então por que cortar os já poucos serviços existentes? E, o pior, motivado por uma crise na saúde que atinge a todos, novamente colocando o “universal” contra as questões de gênero, frequentemente invisibilizadas ou tratadas como questões “menores” frente aos problemas “de todos”?  Não existem outros equipamentos (ou serviços) de saúde que poderiam ser mobilizados frente a esta grave crise que não um dos poucos que atende esta especialidade e é referência para o estado inteiro?

Neste texto, nossa intenção é contribuir com as leituras da pandemia de coronavírus (que causa a doença chamada COVID-19) e seus efeitos a partir de seus impactos sobre as mulheres, com uma abordagem que tende a enfocar aspectos que envolvem a política urbana e territorial, a área de pesquisa deste laboratório. Queremos chamar atenção aqui para a sobrecarga do trabalho reprodutivo e do trabalho com o cuidado, do aumento do stress de carga mental, do desamparo das trabalhadoras informais e do aumento da violência doméstica.

Desde que o coronavírus foi declarado pandemia, inúmeras medidas vêm sendo adotadas pelo diferentes países para barrar o contágio e combater a doença. Assim que elas começaram a ser aplicadas ficou claro, mais uma vez, que diferentes corpos vivem de forma distinta as realidades  de seus territórios. Por exemplo, quando as recomendações de isolamento social começaram a ser divulgadas, foi relativamente simples para mulheres de classes mais abastadas trocar os escritórios pelo home office sem medo de perder o emprego, mas a insegurança bateu forte à porta de uma ampla variedade de mulheres que têm trabalhos informais – sejam elas profissionais liberais com curso superior, como trabalhadoras freelancers de diversas áreas, ou diaristas, ambulantes e vendedoras no geral. Ainda, há também a vulnerabilidade daquelas ocupações já normalmente precarizadas – como funcionárias terceirizadas do ramo da limpeza, ou operadoras de telemarketing, expostas a ambientes inseguros de trabalho e à própria incerteza da manutenção de seus postos de trabalho. Como já se sabe, essa divisão do trabalho, no Brasil, assume contornos raciais: são as mulheres negras que compõem a maior parte das fileiras do trabalho informal e aquelas que recebem os menores salários. Quer dizer, a distribuição desigual dos impactos da crise do coronavírus no país diferencia-se por gênero, classe, território e também racialmente.

A crise na saúde provocada pela pandemia acirrou outras crises em áreas estruturais – como por exemplo a de saneamento: 35 milhões de brasileiros não têm acesso à água corrente, e muito menos tratada, para lavar as mãos! E estudo de 2018 mostrou que 1 em cada 4 mulheres não têm acesso à água, impactando 27 milhões de brasileiras, maior parte delas negras e jovens. Por isso  a elaboração de estratégias de combate a crise tem como desafio não agravar estas crises que afetam mais as mulheres.

No caso delas, o que se assiste é a reprodução de situações de violência de gênero, que envolvem uma maior sobrecarga de trabalho reprodutivo, o completo desamparo de trabalhadoras informais que correm o risco de perder toda a sua renda e o acirramento da violência doméstica.

O chamado isolamento social é a principal medida para combater o acelerado contágio e, com isso, reduzir o impacto sobre o sistema de saúde. Ficarem todos em casa significa que a família passa a cuidar das crianças em tempo integral, na medida em que deixam de ir para a creche / escola. Pesquisas mostram que mulheres despendem, em média, 21,3 horas semanais em trabalhos domésticos e de cuidado, contra 10,9 horas gastas pelo homem, o que quer dizer que, em um cenário dito “normal”, sem pandemia, a mulher já é responsável pelo dobro do trabalho reprodutivo (PNAD, 2019). Com o isolamento social imposto pela crise do coronavírus, essa carga tende a aumentar, somando-se ao desgaste emocional decorrente da crise, que acomete à todas e todos. Sem falar no desgaste mental que geralmente recai sobre as mulheres devido ao fato delas serem geralmente as responsáveis pelo planejamento da casa, com uma carga mental invisível que aumenta o stress e é base para vários conflitos na família, geralmente pautadas na frase “você poderia ter me pedido”, que mostra que a decisão sobre o que será feito grande parte das vezes é atribuição feminina. Ou ainda, na sobrecarga do trabalho de cuidado, pois são as mulheres que em geral cuidam dos enfermos ou acompanham na consulta aos médicos, hospitais, etc. Isso quando não são profissionais do cuidado, como por exemplo, enfermeiras, que correspondem a cerca de 85% dos profissionais de enfermagem, totalmente mobilizadas pela pandemia e isoladas de seus familiares por estarem mais expostas à possibilidade de contrair o vírus.

Para uma grande parte de mulheres que exercem o trabalho doméstico e/ou de cuidado remunerado, a pandemia representou uma precarização das relações e condições de trabalho. Sem garantias e proteção, estas mulheres  se viram à mercê da vontade de seus patrões, o que deu início à campanha “Patrões, liberem nossas mães. Mas continuem pagando”. Muitas delas foram lançadas a um impasse: ser dispensadas sem renda, particularmente para aquelas que trabalham como diaristas, sem vínculos trabalhistas, ou serem obrigadas ao confinamento na casa de seus patrões. No Rio de Janeiro, uma mulher, empregada doméstica, de 63 anos morreu após ter ido trabalhar na casa da patroa que havia voltado de um período de férias na Itália, contraído o vírus, mas que não informou a funcionária sobre esse fato, que continuou a trabalhar normalmente. Antes de morrer, a mulher de 63 anos contaminou os parentes com quem morava, na cidade de Miguel Pereira, distante em três horas do apartamento no Leblon onde trabalhava.

E se o isolamento social não é realizável para todas as pessoas, como já comentamos aqui, também suas formas e consequências são muito variadas. O aumento da violência doméstica pode ser uma delas. Inúmeros estudos já demonstraram que a casa nem sempre é um lugar seguro, afinal, na maior parte dos casos o agressor é um companheiro ou familiar da vítima. Com as medidas do isolamento, milhares de mulheres se vêem confinadas com seus agressores em tempo integral. As tensões tendem a aumentar e, consequentemente, as agressões. No Rio de Janeiro, a justiça estadual já se deparou com um aumento de 50% das denúncias.

Ainda, se a violência de fato acontecer, o quadro da pandemia torna ainda mais difícil fazer a denúncia, ou mesmo tomar as medidas de saúde em relação à violência sofrida ou em situação de violência. Isso porque os equipamentos estão funcionando com horários e pessoal reduzidos, ou mesmo fechados, ou ainda disputados para dar lugar ao combate ao vírus, como é o caso do Hospital Pérola Byington.

Foot: A Gazeta capixaba

E os equipamentos disponíveis hoje já são de difícil acesso, como é o caso das delegacias especializadas (apenas 7 em São Paulo estão funcionando 24 horas), porta de entrada de uma rede protetiva importante que se abre a partir da denúncia da violência. E a acessibilidade à esta rede é complexa e composta por diferentes instituições espalhadas pela cidade que atendem às demandas específicas, por isso é importante que não tenha redução da frequência e das linhas de transporte público coletivo. Para enfrentar a inacessibilidade das delegacias em São Paulo, o Ministério Público está adotando medidas para evitar que haja um aumento de violência no cenário da pandemia por meio do fortalecimento de ações e projetos já existentes, como a Guardiã Maria da Penha, em que agentes das guardas civis são mobilizados para visitar a casa de mulheres com medidas protetivas, e parcerias com agentes de saúde, que também fazem esse acompanhamento. Na França, procurando ampliar (e não reduzir!) o acesso à soluções para o combate da violência doméstica em tempos de coronavírus, os farmacêuticos serão treinados para identificar situações de violência doméstica.

Vão dizer que estes são serviços acionados com o evento violento, são paliativos e não preventivos. Realmente, denúncia, ação judicial e criminalização não devem ser o único caminho: são ações paliativas mobilizadas após ou para quem está em situação de violência, que visam ser exemplares para que tenham um efeito preventivo. Segue sendo fundamental discutirmos padrões de masculinidade, envolver os homens neste debate, educar a sociedade para que não seja tão patriarcal, com enormes diferenças de poder entre homens e mulheres, gerando opressões de gênero sobre as mulheres.

Mas se ainda estamos longe de prevenir para que não haja a violência de gênero, que é estrutural da sociedade brasileira e que deve ser nossa principal bandeira, ao menos tentemos manter a rede protetiva hoje existente, que é mínima, e deveria ser maior! É o que se tenta fazer, inovando nas formas e redes de proteção e prevenção, muitas delas desenvolvidas nestes equipamentos públicos.

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Como recomendação para esse período de isolamento social (e depois que isso passar também), indicamos o novo podcast produzido pela professora Gabriela Leandro, da UFBA, do laboratório Lugar Comum – UFBA, que é parceiro do LabCidade. O podcast “Corpo, Discurso e Território” é resultado do grupo de pesquisa de mesmo nome coordenado pela professora Gabriela, e este episódio tem uma relação especial com o texto acima.

* Doutoranda na FFLCH-USP, pesquisadora do LabCidade;
Doutoranda na FAU-USP, colaboradora do LabCidade;
Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade