Por Isadora Guerreiro, Raquel Rolnik e Paula Santoro*
A Prefeitura de São Paulo lançou duas Consultas Públicas chamando parceiros privados para participar da locação social na área central do município, sem estabelecer relação com as necessidades habitacionais da cidade. As Audiências Públicas serão nos dias 23 e 25 de novembro. Conheça nossa análise das propostas em dois textos: sobre o Chamamento Público para Locação Social (aqui abaixo), e sobre a PPP de Locação Social. ATUALIZADO COM INFORMAÇÕES EM 25/11.
As propostas foram feitas pela Secretaria Executiva de Desestatização e Parcerias (SEDP). Em vez de repensar o lugar da locação social dentro de uma política habitacional com atendimento prioritário às faixas de renda que mais estão sofrendo com a crise, as propostas viabilizam a mobilização de um estoque de imóveis de aluguel recém lançado nos bairros centrais, garantindo seu mercado e direcionando o instrumento de locação para rendas mais altas sem responder o que fazer para atender às faixas prioritárias – que continuam sendo expulsas mesmo durante a pandemia.
Uma bolsa-aluguel de mercado popular: financeirização 2.0 à vista
Em 2004, 10 anos depois da criação da Política Municipal de Habitação (PMH) de São Paulo (Lei Municipal 11.632/1994), um adendo (Art.10, Inciso IV) à lei autorizou o Fundo Municipal de Habitação a alugar unidades habitacionais de terceiros – o que, na prática, possibilitou a criação Programa Bolsa Aluguel** a partir daquele ano. O objetivo inicial deste programa, como foi definido pela Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) em 2004, era dinamizar o mercado privado de locação na cidade: “Com a aprovação, no Plano Diretor Estratégico da cidade, da figura da Habitação de Mercado Popular – HMP, espera-se o desenvolvimento de um mercado privado de locação social, para cuja dinamização a Bolsa Aluguel pode ser um instrumento bastante efetivo” (SEHAB, 2004, p.69).
Parece ser a retomada deste objetivo inicial que levou a Secretaria de Desestatização e Parcerias, em conjunto com a COHAB, a lançar um Chamamento Público (CP006/SGM-SEDP/2021) para locação social de unidades de terceiros na área central da cidade. O chamamento anuncia o pagamento de aluguel de mercado – com definição de valor por metro quadrado feitos junto à DATAZAP Inteligência Imobiliária – para 3 mil unidades residenciais, por cinco anos, tendo a COHAB como locatária, que por sua vez sublocará para os beneficiários finais – cujas faixa de renda e critérios de seleção não estão descritos na Consulta Pública. É necessário, portanto, se atentar nas entrelinhas da modelagem financeira para pressupor para qual faixa de renda serão destinadas às unidades – ainda que os critérios de seleção permaneçam incógnitos. A modelagem financeira apresentada não parece estar destinada ao público prioritário – concentrado nas faixas de renda familiar mensal de 2 salários mínimos, ainda com relevância até 3 – mas sim em faixas superiores: os aluguéis são de valores de mercado em uma região extremamente valorizada. Não está claro também se haverá subsídio – integral ou parcial – ou ainda se haverá fundo de reserva como garantia contra inadimplência. A fonte desses recursos de subsídio, se forem necessários, também não está clara. Para poder sanar todas estas dúvidas, é fundamental a discussão da proposta no Conselho Municipal de Habitação, além da Audiência Pública já marcada – que precisará ser realizada mais vezes, pois apenas uma hora de discussão é insuficiente diante dos impactos financeiros e urbanísticos desta proposta.
A locação não será realizada unidade a unidade: será feita por blocos de imóveis (cerca de 600 unidades), dentro de lotes (que são definidos de distritos da área central). Cada lote é subdividido em áreas de ponderação***, que definem diferentes preços do metro quadrado dos imóveis, segundo sua tipologia e idade. A distribuição dos lotes e áreas de ponderação (ver abaixo Figuras 1 e 2) acompanha as frentes de expansão imobiliária recentes no centro e a valorização imobiliária de cada bairro: quanto mais intensa esta frente, menores as áreas dos lotes e das áreas de ponderação delimitadas, indicando uma correlação entre o tamanho do estoque de novas unidades recém lançadas e os “pacotes” incluídos no chamamento. Ou seja, onde há maior densidade de lançamentos com valor de aluguel alto por metro quadrado, menores as áreas dos lotes e áreas de ponderação (ver Figura 3, mapa abaixo), indicando uma correlação entre o programa público e o interesse do mercado, e não um incentivo para a produção em áreas menos valorizadas.
Cada lote tem pré-delimitado uma quantidade mínima de metros quadrados para locação, com um valor máximo total (incluindo condomínio, encargos e despesas de água, luz e gás), a ser pago pela COHAB, precificado pelas áreas de ponderação e pela tipologia dos imóveis específicos. Cada lote será ganho por apenas um proponente que, para ser habilitado na licitação, deve apresentar documentação de uma parte do bloco de imóveis correspondente a pelo menos 25% de cada lote que já esteja sob sua propriedade – ou sob sua gestão direta de carteira – e que poderá ser rapidamente disponibilizada. A apresentação dos demais imóveis dentro do lote será feita em etapas, depois do resultado da licitação. A licitação será ganha pelos proponentes que apresentarem o maior desconto do valor máximo de locação delimitado no Edital de Chamamento Público. A somatória dos valores máximos por lote alcança uma quantia de R$ 7,1 milhões mensais (ver Tabela 1 abaixo), que a prefeitura espera baixar, pela concorrência, para R$ 4 milhões mensais****.
A lógica é a de que os imóveis dispersos devam ser controlados de forma centralizada por gestores de carteira (imobiliárias, administradoras de patrimônio, fundos), que ganham um valor total por seu bloco de imóveis, que podem ser novos (10 anos de lançamento) ou antigos, ter entre 24 m² e 50 m² (indica-se a metragem quadrada média de 38,2 m² por unidade), com exceção para imóveis até 70 m² (cuja área além de 50 m² não será computada para o valor do aluguel). Os imóveis devem ser legalizados e cumprir uma série de exigências arquitetônicas (ver Anexo IV) – não é possível, portanto, a locação de imóveis em áreas informais e precárias como cortiços e favelas. Há tabelas que indicam o valor máximo de aluguel por metro quadrado para cada tipologia e localização (páginas 14 a 19 do Anexo III). Um imóvel novo de 50 m² na Bela Vista, no Centro, pode chegar a R$ 4300 de aluguel (com condomínio, encargos e despesas de água, luz e gás), por exemplo.
Dentre as justificativas da prefeitura para a implantação deste programa (ver em Justificativa da Consulta Pública), está a necessidade de intervenção (indireta) nos preços de aluguel da área central. Ganha a licitação o proponente com maiores descontos nos valores máximos de locação, já bastante altos, o que estimularia um fator de concorrência indireta que poderia rebaixar os preços do aluguel na região. Além disso, esta dinamização do mercado seria, de acordo com a justificativa da prefeitura, um incentivo para o uso de imóveis ociosos e construção de novas unidades voltadas ao aluguel. A ligação não é direta, mas a propaganda municipal faz as conexões entre este programa e o Programa Requalifica Centro, que também tem a perspectiva de aumentar a disponibilização de unidades em uso na área central, que hoje possui muitos imóveis ociosos – sem deixar claro, também, quem serão os beneficiários finais e seus critérios de seleção.
Este tipo de justificativa parece inicialmente relacionada à alteração do perfil do déficit habitacional brasileiro, índice que desde 2015 tem mostrado o peso excessivo do aluguel como o principal fator para inadequação habitacional no Brasil, com 50% do déficit total – na RMSP ele chegou em 2019 a representar 69,6% do déficit local.
No entanto, o déficit habitacional total se concentra na faixa de até dois salários mínimos de renda familiar mensal (R$2200) e, no caso dos domicílios com ônus excessivo de aluguel, 85% são de famílias nesta faixa de renda. Se o programa não está direcionado para esse público, não parece ser real sua justificativa e objetivo a longo prazo.
Outro fator que desmente as boas intenções da prefeitura em começar a intervir nos preços dos aluguéis é o de que a proposta acaba incentivando uma tendência monopolista no mercado de locação por gestores de carteira, o que tem como consequência o aumento, não o rebaixamento de preços na região. O monopólio de carteira de aluguel faz com que o poder de definição de seu preço fique cada vez concentrado na mão de poucos gestores de carteiras (no caso, apenas cinco, um para cada lote) – cujos valores praticados passam a ser a referência para os preços sociais, como na proposta debatida em São Paulo. O caso recente de Berlim indica isso: foi realizada uma consulta pública (vitoriosa) para expropriar propriedades residenciais de grandes empresas na cidade que, monopolizada por poucos gestores de carteira, fazem com que o aluguel esteja praticamente impagável para a população local. O mesmo caso está sendo possível observar em outras cidades do mundo onde grandes proprietários corporativos passaram a exercer monopólios no mercado de aluguel.
Para além do monopólio de carteira, olhando para o programa proposto em São Paulo, percebe-se no valor do metro quadrado de locação e na metragem média ideal um modelo direcionado para apartamentos pequenos e caros. Começam a aparecer aí os os reais objetivos do programa: este modelo cai como uma luva para os investidores – que estão justamente apostando e construindo esta tipologia nesta mesma região (ver Figura 3 abaixo). Neste aspecto, é importante nos atentarmos ao cenário atual da locação financeirizada, que começa a dar seus primeiros passos em São Paulo, como apresentado neste resumo de um texto que estamos trabalhando. Estão sendo lançados edifícios padronizados, que não formam um condomínio, de um único dono, denominados multifamily. São edifícios ligados a Fundos de Investimento, em grande medida gestores de carteira corporativos globalizados. O programa municipal poderá, através do modelo apresentado, não apenas viabilizar o aluguel destas unidades, mas também utilizar a expectativa de pagamento dos aluguéis futuros (garantida pela prefeitura) para securitizar estes recursos (públicos), com ganhos financeiros privados e desnacionalizados.
Figura 3: Lançamentos imobiliários novos (10 anos de lançamento) entre 24 m² e 50 m²
A impressão é de que este programa está sendo realizado sob medida para um mercado aquecido e conectado com a nova frente global do complexo imobiliário-financeiro, que já tem unidades padronizadas à disposição para locação, porém ainda não consegue dar a vazão requerida por seus investidores, que exigem escala e segurança de retorno. Apostando neste modelo, empresas desta nova frente global se depararam com uma grande crise do aluguel em meio à pandemia e, agora, recorrem aos recursos públicos para garantir seus negócios financeirizados. Algo muito parecido com o que foi o Programa Minha Casa Minha Vida para empresas que tinham, naquele período, recém aberto capital na Bolsa e precisavam de vazão garantida e escala para os seus produtos, estratégia que deu origem ao atual mercado de habitação popular no Brasil, antes inexistente, e que hoje é o principal responsável pelo crescimento do setor imobiliário na país.
Mas será esta a política pública que precisamos promover no centro de São Paulo, tendo em vista a importância da região para as classes populares de renda mais baixa e, principalmente, seus modos de vida, que não são os mesmos destes produtos imobiliários? Como atender esta população prioritária, inclusive utilizando políticas de aluguel? Com outras formas de uso dos recursos públicos e de participação ativa da sociedade – inclusive, dos movimentos populares, que precisam destes recursos para reformar os edifícios atualmente ocupados, que passam de 50 na região central.
Assim, acreditamos que a proposta da prefeitura ainda merece muita discussão, sendo a Audiência Pública que o discutirá no dia 25 de novembro uma primeira oportunidade. Além de vários pontos essenciais que não estão claros, o que parece é que não se trata de uma política habitacional, muito menos de uma política habitacional de interesse social, mas sim de um programa de viabilização e dinamização de uma nova fronteira do complexo imobiliário financeiro voltada ao aluguel, como já tem ocorrido em várias outras cidades do mundo.
* Isadora é professora da FAU-USP e pesquisadora no LabCidade; Raquel e Paula são professoras da FAU-USP e coordenadoras do LabCidade.
**O atual Auxílio Aluguel (Portaria Sehab nº 131/2015) é parte do Programa Ações de Habitação (Decreto nº 51.653, de 22 de julho de 2010), diferente, portanto, deste antigo Bolsa Aluguel (Resolução CMH nº 04/2004), que deixou de ser usado em 2007, embora sua regulamentação no PMH de 1994 continue vigente. Falamos sobre estas diferenças em outro post.
*** As áreas de ponderação são perímetros definidos pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano com apoio da Fundação SEADE (dentro dos critérios do IBGE para o Censo de 2010) e que conjugam critérios de tamanho, contiguidade e homogeneidade em relação a um conjunto de características populacionais e de infraestrutura (ver nota da página 10 do Anexo III).
**** O valor é alto se comparado com o atual Auxílio Aluguel, para famílias de até 3 salários mínimos, às quais restou a política de remoção associada à permanência da moradia precária, e não um programa como este Chamamento, que conta com aluguéis formais controlados e bem localizados, claramente para outro público. A título de exemplo, a prefeitura gastava em julho de 2020 cerca de R$ 11 milhões mensais para 26 mil beneficiários do Auxílio Aluguel, enquanto este Chamamento direciona mais de um terço deste valor para apenas 3 mil famílias. Fonte: Relatório de Auditoria Programada do TCMSP.
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