Pedro Mendonça, Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Gisele Brito e Paula Santoro*
Assim que terminou a apuração dos votos do segundo turno para prefeito da cidade de São Paulo, começaram a circular mapas com o resultado da votação por zona eleitoral. Basicamente, esses mapas mostravam a vitória de Bruno Covas na cidade inteira, com exceção de algumas zonas no extremo Leste (Cidade Tiradentes e São Mateus) e da periferia Sul (Capão Redondo, Campo Limpo e Grajaú). Como já apontamos em nossos mapas dos votos no primeiro turno, esta é uma leitura pouco explicativa, que quando analisada em outras escalas, especificamente a das seções eleitorais, nos revela um cenário mais complexo. É o que vamos procurar fazer assim que as informações por boletim de urna forem liberadas pelo TSE.
Entretanto, mesmo na escala da zona eleitoral já é possível fazer alguns apontamentos. O primeiro se refere à comparação dos mapas de votação da disputa de 2020, entre Guilherme Boulos (PSOL) e Bruno Covas (PSDB), com os resultados do segundo turno da eleição presidencial em 2018, envolvendo Jair Bolsonaro (à època PSL, hoje sem partido) e Fernando Haddad (PT). As narrativas apoiadas nesses mapas apontavam para a coincidência absoluta das duas corridas eleitorais, ou seja, que, no embate entre “direita” (Covas e Bolsonaro) e a “esquerda” (Boulos e Haddad) nada teria mudado entre 2018 e 2020.
Mas será que de fato, na geografia dos votos das últimas eleições paulistanas nada mudou? Como já temos insistido em trabalhos anteriores, os mapas revelam, mas também escondem. A narrativa que simplifica o debate entre direita e esquerda, áreas ricas e pobres da cidade, não ajuda a entender quais foram as coalizões, as forças e os repertórios político-culturais que estiveram presentes em 2018 e 2020. Confina a interpretação dos resultados eleitorais mais a partir do passado do que do presente, ignorando as mudanças no cenário político.
Essa leitura reforça a narrativa que o resultado dessas eleições se deu face ao candidato de “esquerda” ter perdido na periferia – ou, ainda pior, culpa uma suposta falta de consciência de classe dos periféricos e periféricas ao votar. Como se a força política dos trabalhadores – que foi fundamental no crescimento do PT na cidade – simplesmente tivesse se esvaído e como se nenhum outro movimento sociopolítico e cultural tivesse emergido ali.
As movimentações culturais das periferias, um dos pilares da coalizão Boulos na cidade, por exemplo, desaparecem na narrativa retratada nessa representação cartográfica, como também nos apontamentos sobre uma desidratação do PT nos territórios. Assim como desaparece a força do movimento antirracista, fortemente enraizado em vários bairros periféricos a partir de onde redesenham o movimento negro e sua inserção territorial.
Esta leitura também é incapaz de apontar as transformações do espaço ocupado pela população que concentrava a renda e o poder na cidade, no chamado “vetor Centro Sudoeste”, e que hoje se expande a Leste, Norte e Sul. Ao comentar o resultado do voto no primeiro turno apontamos alguns elementos presentes nesta diversidade.
Embora a escala das zonas eleitorais leve a uma compreensão equivocada da dinâmica eleitoral – quem vota são as pessoas e não os territórios –, mesmo a partir dela é possível contrapor a leitura apontada acima. O mapa abaixo mostra a diferença dos percentuais de votos em Guilherme Boulos e Fernando Haddad por zona eleitoral, já que em votos totais esta comparação não é possível dada a queda dos votos válidos em todas as zonas e para os dois candidatos. Isso se explica pela altíssima abstenção, que somada aos brancos e nulos chegou a quase 40% dos eleitores da cidade. Neste mapa vemos como as variações do voto entre 2018 e 2020 não acontece de forma homogênea, mas tem uma lógica espacial.
Boulos teve um desempenho melhor nas zonas da região chamada Leste 1, primeiro anel de bairros autoconstruidos na Zona Leste, local onde houve grande mobilização de coletivos culturais e de atuação histórica de Luiza Erundina. Chama a atenção também o Campo Limpo, não apenas o bairro de residência de Boulos, mas a área de forte atuação do MTST – Movimento de Trabalhadores Sem Teto, no qual o candidato do PSOL é uma liderança.
Na região Sul ocorre o contrário, o que pode ser explicado pelas alianças que Covas estabeleceu com lideranças políticas ligadas ao Centrão – aliás, grande vitorioso desta eleição no cenário nacional – que, com tecnologias da distribuição de benefícios individuais e territorializados (de vagas em creches e hospitais, cestas básicas, patrocínio de times de futebol de várzea, promoção de loteamentos e pequenas infraestruturas), “entrega” de forma seletiva há décadas o que as políticas públicas em sua pretensa universalidade nunca garantiram. Foi esta velha política com toda sua tecnologia eleitoral, aliada a um voto mais ideológico do “centro rico”, que garantiu a vitória a Covas.
Já os mapas a seguir mostram o crescimento de Covas e Boulos na comparação entre o primeiro e o segundo turno.
A leitura dos mapas acima revela que o crescimento entre o primeiro e o segundo turno de Boulos e de Covas ocorreu na cidade toda, ainda que não de forma linear. Nas periferias Noroeste, extremo Leste e algumas regiões da Zona Sul os votos para Boulos quase triplicaram, revelando uma penetração da candidatura nestas regiões. Já para Covas o maior crescimento se deu na região onde emergiu e se instalou uma nova classe média e alta na cidade, como o bairro do Tatuapé na Zona Leste, mas também na periferia Nordeste. Em apenas uma zona eleitoral – Itaim Paulista – os dois candidatos coincidem em seu maior intervalo de crescimento.
Ao trazer estes elementos para o debate, queremos reforçar a hipótese de que não tem nada de estático ou paralisado no cenário político paulistano. Esta foi uma eleição diferente das anteriores, não apenas pela grande abstenção – que aliás vem crescendo eleição a eleição – mas também pela presença de uma candidatura que, sem máquina, dinheiro nem marqueteiro milagroso, conseguiu agregar o novo na política paulistana com o legado de uma trajetória de esquerda enraizada em vários bairros da periferia da cidade.
Ainda que parte dos eleitores baseie seu voto na informação ou desinformação oriunda da TV, Internet e WhatsApp, ou que o chamado voto “ideológico” possa ainda ter um peso em certos setores, a experiência vivida na cidade é decisiva também. Ela pode ser medida através do contato real do eleitor com investimentos ou benefícios obtidos através de eleitos ou seus operadores territoriais, mas pode ser também mediada por outras gramáticas de luta e de sobrevivência. Por isso, para compreender o presente é preciso analisar a geografia dos votos para além de sua historicidade e das categorias que esta construiu (centro/periferia; direita/esquerda), construindo novas cartografias.
*Graduando na FAU-USP e pesquisador do LabCidade; Doutorando na UFABC e pesquisador do LabCidade; Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade; Mestranda na FAU-USP e pesquisadora do LabCidade; Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.
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