Carta Aberta sobre o Ginásio do Ibirapuera e o Conjunto Desportivo “Constâncio Vaz Guimarães”
Os docentes e pesquisadores da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo vêm a público manifestar sua extrema preocupação com os destinos do Ginásio do Ibirapuera e do Conjunto Desportivo “Constâncio Vaz Guimarães” diante do Projeto de Concessão do Governo do Estado para a área. O projeto, tal como estruturado, representa séria ameaça à integridade física e ao funcionamento de um equipamento esportivo que, além de ser muito utilizado na formação de atletas no Brasil, é constitutivo da história da cidade de São Paulo e realização fundamental da história da arquitetura brasileira. Além disso, tem grandes valores de uso e afetivo pela comunidade esportiva que dele faz intenso uso desde os anos 1950.
São diferentes os motivos que justificam a preservação do Conjunto Desportivo “Constâncio Vaz Guimarães”, onde se localiza o Ginásio do Ibirapuera. Esse último edifício deve ser protegido por questões estilísticas e construtivas, mas também pela sua importância dentro da arquitetura moderna brasileira e da modernização do esporte e da cultura da cidade de São Paulo em meados do século XX. Isso significa que o Ginásio é fundamental para compreender as arquiteturas brasileiras para o tempo livre e o lazer, assim como para entender as transformações do espetáculo e da prática esportiva nesta metrópole em permanente expansão. Aliás, o Ginásio representa os esforços do poder público para criar espaços públicos de alta qualidade disponíveis à população.
O seu arquiteto, Ícaro de Castro Mello – atleta recordista sul-americano de salto em altura e salto com vara, membro da equipe brasileira de atletismo nas Olimpíadas de Berlim, em 1936 –, é consagrado autor de diversas obras relevantes para a história da arquitetura brasileira, realizadas no Departamento de Educação Física e Esportes (D.E.F.E.) do Governo do Estado e em seu escritório particular, como a Piscina Coberta do Conjunto Desportivo Baby Barioni, em São Paulo; o Ginásio Paulo Sarasate, em Fortaleza; o Ginásio Geraldo Magalhães, em Recife; os edifícios esportivos do Sesc Itaquera e Bertioga, entre outras centenas de edificações. A sua atividade, além de indicar a relação entre as carreiras de atleta e arquiteto, garantia da expertise e da qualidade de seus projetos, fala da valorização social das atividades esportivas e de lazer e, a partir daí, da ação qualificada do Estado para o bem comum. Tal atuação foi reconhecida não só entre os especialistas, mas pela cidade que deu à praça à frente do Complexo Desportivo “Constâncio Vaz Guimarães” o seu nome próprio.
A construção do Ginásio tem que ser entendida, portanto, como parte de um processo maior de construção de equipamentos esportivos e de lazer na cidade e no Estado de São Paulo, iniciado pelo menos em meados da década de 1930, quando começou a edificação do Estádio do Pacaembu, foi estruturada a Escola de Educação Física de São Paulo e o Departamento de Educação Física e Esportes do Estado (DEESP), e foram estabelecidos nos Jogos Abertos do Interior. O Ginásio é parte de um esforço público do governo estadual para impulsionar a prática esportiva em diversas cidades. Exemplos disso são os Ginásios de Sorocaba (1950) e Ribeirão Preto (1951), ambos projetos do Ícaro e desenvolvidos no interior do DEESP.
No início da década de 1950, São Paulo era um lugar importante dentro do circuito esportivo internacional. O tamanho de sua indústria esportiva, a densidade de sua rede de clubes e federações, o desenvolvimento da arquitetura esportiva na cidade e sua posição privilegiada dentro do mapa esportivo brasileiro, faziam da capital paulista um ponto atrativo para sediar eventos esportivos de grande escala. Ademais, o esporte chamava a atenção de milhares de pessoas todos os finais de semana, que participavam tanto como praticantes amadores quanto como espectadores de jogos do campeonato profissional de futebol, mas que também participavam e assistiam competições atléticas, combates e lutas de artes marciais, exibições de esportes aquáticos e corridas de ciclismo pela cidade. Esse contexto favorável fez com que o esporte fosse considerado parte das comemorações do IV Centenário. Popular, fortemente organizado e de interesse público e privado, o esporte era um campo social em que a cidade de São Paulo também poderia projetar sua excepcionalidade.
O impulso também esteve influenciado pelo efeito do pan-americanismo esportivo – os primeiros jogos Pan-Americanos foram organizados em Buenos Aires, em 1951 – e outras competições internacionais no continente, mas também pelo próprio diagnóstico feito no interior do campo esportivo paulista em relação à necessidade de edificar equipamentos esportivos complementares já existentes: enquanto o Pacaembu já era visto como ultrapassado, a cidade também precisava de uma piscina olímpica aquecida – a Piscina de Água Branca, pertencente ao Conjunto Desportivo Baby Barioni, foi inaugurada em paralelo à construção do Ginásio do Ibirapuera – e de um estádio coberto, que fosse sede de eventos esportivos, shows musicais, atividades culturais e comícios políticos, tal como já acontecia nos casos do Luna Park em Buenos Aires ou do Madison Square Garden em Nova York. Nesse sentido, a construção do Ginásio do Ibirapuera procurava cumprir uma função social dentro da trama social e cultural da cidade.
Por diversos motivos financeiros e do desenvolvimento da Comissão do IV Centenário, o Ginásio não conseguiu ser inaugurado para a Copa do Mundo de Basquete, evento que formaria parte das comemorações de 1954 em São Paulo. O edifício esportivo começou a funcionar em 1957, constituindo-se rapidamente num dos principais cenários do esporte e da cultura paulista e brasileira. O velódromo ficou prontamente desatualizado em relação às normas da União Ciclista Internacional e foi reformado pelo arquiteto Ícaro de Castro Mello, transformando-o num Estádio Atlético inaugurado em 1965. Três anos mais tarde, o complexo esportivo foi complementado com a inauguração do Conjunto Aquático, de autoria do arquiteto Nestor Lindenberg, palco da expansão da natação paulista e da prática amadora de milhares de pessoas ao longo das suas décadas de uso público.
É importante também entender o Ginásio como parte das tensões, rupturas e permanências do longo percurso da constituição do Parque do Ibirapuera: desde meados da década de 1920, foi defendida a ideia de um parque metropolitano onde fosse possível o acesso ao lazer por parte de diferentes classes sociais, um local onde fosse possível o contato com a natureza, em contraponto ao crescimento e ao aumento da densidade urbana paulistana. O Ginásio e o Velódromo primeiro, e logo depois o Parque Aquático, faziam parte desse espírito. Uma defesa do Ginásio do Ibirapuera e do Complexo Esportivo é também uma defesa do direito ao lazer, uma ideia que esteve no interior das discussões sobre o que deviam ser as comemorações do IV Centenário. O Ibirapuera não era arte e indústria só, também era local para a prática do esporte, do lazer e de espetáculos. O Ibirapuera é a marquise e os pavilhões, assim como também o Ginásio e o Velódromo. Desancorar o complexo esportivo da história do parque é apagar uma das principais narrativas que justificaram a construção de um dos principais espaços públicos da cidade.
A vitalidade contemporânea do conjunto esportivo pode ser comprovada nas transformações e adequações que foram sendo progressivamente realizadas de modo a adequá-lo às mudanças nas práticas esportivas, nos seus equipamentos e modalidades. As mudanças são prova da resiliência do Conjunto Esportivo na cidade. O intenso uso dos espaços, que formou inúmeros vitoriosos atletas brasileiros como Maurren Maggi, Tiago Camilo, Felipe Kitadai, Rafael Silva e tantos outros, mostra a importância do conjunto para o esporte brasileiro.
Estando de acordo com o Parecer Técnico da Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico – UPPH – da Secretaria de Estado da Cultura, que afirma que o conjunto constitui importante referência à memória, à ação e à identidade de São Paulo, conforme as indicações da Constituição Brasileira no seu artigo 216 do que se determina como patrimônio cultural no Brasil. É também marco histórico fundamental da arquitetura moderna brasileira/paulista no campo dos equipamentos esportivos no seu todo, mas também em relação às partes que o compõem. Individualmente, os edifícios do Conjunto Desportivo, do Ginásio, do Estádio de Atletismo e do Conjunto Aquático são exemplares incontornáveis da produção paulista de arquitetura moderna que devem ser preservados às gerações futuras.
A proposta em curso de transformação do Complexo em equipamento privado alterará de maneira grave e
irreversível a sua materialidade. Ela desconsidera a organização dos espaços livres, a excelência e a qualidade de sua arquitetura, o seu papel na memória e na paisagem urbana de São Paulo. A execução de um projeto com tal caráter destruirá parte da história e da memória da cidade, comprometendo também o seu desenvolvimento futuro. Por fim, a preservação deste patrimônio paulistano e nacional iria também ao encontro das preocupações recentes com a preservação ambiental e a sustentabilidade.
Apoiam esta carta:
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Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno
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