Google Street View

 

Por Aluízio Marino, André Luiz Freitas Dias e Denise Morado**

Após quase nove meses do rompimento da barragem da Mina do Córrego do Feijão, em Brumadinho, o Corpo de Bombeiros encontra mais duas das 272 vítimas, restando 19 pessoas ainda não localizadas. A Vale, uma das maiores mineradoras do mundo, por trás do compromisso de “gerar prosperidade com respeito pelas pessoas e pelo meio ambiente”, categoriza as vítimas não localizadas como desaparecidas/sem contato.

Pais e familiares, usando camisetas estampadas com fotos de seus entes, insistem: “nossos filhos não estão desaparecidos, foram assassinados, minerados pela lama, e sabemos muito bem onde estão”. Sob a profunda dor do luto e a violenta imposição dos fatos, corpos fragmentados foram gradativamente entregues às famílias, enterrados em caixões lacrados. “Não sabemos ao certo o que enterramos”.

A Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem da Mina do Córrego Feijão de Brumadinho (AVABRUM) luta para que essa tragédia/crime não caia no esquecimento, como ocorrido no rompimento da barragem em Mariana, em 2015. Todo dia 25, a associação realiza ato em honra e homenagem às 272 vidas ceifadas pela Vale e levanta sua maior bandeira, neste momento: “Encontrar as 19 Jóias Ainda Não Encontradas/Identificadas”. Neste ato, a AVABRUM também manifesta a sua “luta por justiça e punição aos responsáveis”, bem como exige “responsabilidade para com os familiares das vítimas e com as cidades afetadas”.

Não só a dor do luto mas também a violência dos processos permanecem em Brumadinho. Há em curso uma disputa perversa e velada de narrativas entre aqueles que foram afetados pelo crime, angustiados pela ausência e pela memória de seus familiares, os moradores da cidade, pressionados pelas dificuldades da vida cotidiana, os prestadores de contas da empresa, responsáveis em executar os acordos preliminares assinados com o Ministério Público, a Defensoria Pública e a Advocacia Geral da União e de Minas Gerais.

Tanto pelo site institucional da empresa quanto pelas notificações publicitárias, nacionalmente veiculadas na televisão e no rádio, a Vale atualiza cotidianamente gráficos, indicadores e números constituintes do Programa de Assistência Integral aos Atingidos da Vale, cujo objetivo é apoiar “as pessoas impactadas na adaptação a uma nova realidade”, bem como do Balanço da Reparação, que relata as ações da Vale em Brumadinho e região. Pouco se propaga sobre os riscos de rompimento e ações de manutenção das outras 133 barragens de minério de ferro de sua propriedade (sendo 80% delas localizadas em Minas Gerais).

A Vale, que em 2018 teve um lucro de R$ 25,657 bilhões, vem injetando recursos financeiros em Brumadinho para a reparação do crime: um salário mínimo por mês a cada adulto, meio salário mínimo por mês a cada adolescente, e um quarto do salário mínimo por mês a cada criança, tenham eles sido afetados ou não pelo rompimento da barragem. Como consequência, a febre do consumo na cidade está implantada: de janeiro a junho de 2019, a receita de Brumadinho alcançou R$ 153,8 milhões, enquanto no mesmo período em 2018, a receita foi de R$ 52,5 milhões.

Na contramão, a injeção de recursos financeiros de forma individualizada vem gerando uma série de conflitos entre famílias, fragilizando laços sociais, até então, sólidos. Para os familiares, a distribuição de dinheiro pretende estrategicamente silenciar os moradores, reduzir as críticas e os processos judiciais contra a Vale e desmobilizar a comunidade na medida em que dividiu-se a cidade entre, de um lado, consumidores, e, do outro lado, enlutados. “A Vale comprou a cidade; a Vale está jogando com dinheiro”. Lamentavelmente, familiares tem escutado pessoas, que estão recebendo dinheiro advindo da tragédia/crime, a dizer: “Há males que vem para o bem”, entre outras coisas.

Entre os diversos projetos de reparação anunciados pela empresa está a criação de um memorial para as vítimas fatais. A construção do Memorial é de extrema importância para a AVABRUM: “Queremos que as JÓIAS, vítimas desta tragédia/crime, fiquem eternizadas. E sejam honradas de forma digna e que nenhuma outra família passe pelo que estamos passando”. Para isso, a associação entende que o conceito, a definição do local e os projetos devem ser aprovados pelos familiares, com a devida agilidade na execução dos processos, assim como acontece nas obras de reparações realizadas pela Vale que objetivam minimizar o crime ambiental.

O diálogo com os representantes da Vale tem sido extremamente difícil e doloroso. Em reuniões com os associados, a empresa é sempre representada por “profissionais de alto gabarito”, contratados para desenvolver projetos a partir de diretrizes unilateralmente pré-estabelecidas. Entretanto, a AVABRUM exige autonomia nos processos de tomada de decisões sobre o que, onde e como será feito. O Memorial está entre as questões mais sensíveis desse diálogo: “esse memorial é nosso; nós queremos dar o tom da conversa”.

O slogan A vida em primeiro lugar, lançado pela Vale após o rompimento da barragem em Mariana, não faz jus ao que os familiares das vítimas e moradores de Brumadinho e de cidades atingidas estão vivendo. A faixa estendida no portal de entrada da cidade é contrária à campanha da Vale: “O lucro acima de tudo. Lama em cima de todos”. O crime da Vale, calcado pelo modus operandi de exploração mineral no Brasil, não começou em Mariana, tampouco se esgotou no dia do rompimento da barragem em Brumadinho.

Nesse cenário, não há como evitar a pergunta: onde está o Estado? A Vale tem sido protagonista na proposição, no monitoramento, na efetivação e na avaliação de suas próprias ações. Após o maior desastre trabalhista do país, na avaliação dos moradores, “o Ministério Público do Trabalho homologou o que considerou o maior e melhor acordo trabalhista da história do Brasil”. No último 25 de setembro, a Superintendência Regional do Trabalho de Minas Gerais apresentou o relatório final de fiscalização sobre o rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão, demonstrando que, em 2016, uma inspeção recomendava a interrupção das atividades e comunicação de risco de desabamento à comunidade.

A Vale tem o dever de reparar os danos, de todas as ordens, que causaram a todos os diretamente atingidos (familiares, comunidades, sobreviventes), além de ter também responsabilidades na reconstrução da cidade. Políticas públicas locais estruturantes precisarão ser fortalecidas para a garantia de direitos e o devido e necessário cuidado às pessoas e famílias afetadas pelo crime, não somente no presente, mas pensando no futuro e nos efeitos perversos que permanecerão e serão sentidos na cidade durante várias gerações.

Entretanto, esses processos devem ser rigorosamente protagonizados pelos familiares das 272 vítimas e pelas comunidades diretamente atingidas, respeitadas sempre as suas autonomias individuais e coletivas.

A AVABRUM avisa: “Lutaremos. Até quando? Até sempre”.

* Em roda de conversa com os membros da Associação dos Familiares de Vítimas e Atingidos do Rompimento da Barragem da Mina do Córrego Feijão de Brumadinho (AVABRUM), em Brumadinho, 28 de setembro de 2019.
** Doutorando na UFABC, pesquisador do LabCidade; Professor da UFMG e integrante do Polos de Cidadania; Professora da Escola de Arquitetura da UFMG e coordenadora do PRAXIS.