Por Guilherme Wisnik e Raquel Rolnik*
Um documentário narrado em primeira pessoa por uma jovem cineasta que nasceu junto com as promessas de redemocratização do país após 20 anos de ditadura militar se arrisca na difícil tarefa de amarrar os fios de uma história recente, contada a partir de sua posição: filha de militantes de esquerda em uma família da elite mineira, fundadora da Construtora Andrade Gutierrez, uma das empreiteiras envolvidas na Operação Lava Jato. Apesar de mostrar a prisão de Lula, o impeachment de Dilma Rousseff e a Lava Jato, o filme não é exatamente sobre isso. Democracia em Vertigem, de Petra Costa, quer falar sobre o muro que, cortando a Esplanada dos Ministérios ao meio, rasga o país em campos que parecem hoje irreconciliáveis. Como chegamos até aqui?
Não é apenas a história política do Brasil que é contada no filme. Junto com ela, e de forma subliminar, há uma outra história dentro da história: a aventura de Brasília, com seu sonho utópico e suas vicissitudes reais. Pois a capital do país – seu espaço urbano e seus palácios –é, na verdade, personagem central do filme. Mais do que um simples cenário, ou pano de fundo, Brasília é o próprio espectro da modernidade democrática a se cumprir, tanto como promessa quanto como impossibilidade.
Poucas vezes os interiores de seus palácios foram filmados com tanta intimidade e beleza, isto é, com tamanha força de revelação. Em diversos momentos do filme longos travellings atravessam os espaços vazios do Palácio da Alvorada, por exemplo, nos quais as famosas Poltronas Barcelona, de aço inox e couro preto, contracenam com móveis coloniais de madeira, tapeçarias ornamentadas, paredes de espelhos e esculturas antropomórficas. Uma bela equação moderna, segundo a qual o passado colonial é filtrado e incorporado sem fraturas como projeto de futuro.
Palácio da Alvorada: a Casa-Grande com capela anexa, agora divorciada da Senzala, e com o peristilo e o mármore apolíneo dos templos gregos, numa poderosa síntese moderna dos anos 1950. Imagem de um instante que, tal como vemos no filme, parece se manter eterno, intacto, congelado e sempre novo, como são os sonhos e as promessas não cumpridas.
Em um dos momentos altos do documentário, duas placas metálicas simetricamente instaladas no Palácio explicitam uma de suas “teses”. As placas comemoram as obras de restauração do prédio em dois momentos distintos da história recente do país: nos governos Collor e Lula,em 1991 e em 2006, respectivamente. Obras de restauro que, apesar das diferenças políticas dos dois governos, foram igual e voluntariamente oferecidas pelas principais empreiteiras do Brasil.
Essa manutenção permanente dos edifícios é fundamental para garantir a essência dos projetos de Niemeyer em Brasília: sua brancura, sua leveza, sua lisura sem emendas, como imagens metafísicas de algo que se realiza magicamente fora do seu lugar concreto e do seu tempo histórico. Como se fossem os cenários futuristas de Flash Gordon, as “crateras da lua”, ou os vestígios de “um passado esplendoroso que já não existe mais”, nas palavras de Clarice Lispector. Aparentemente localizada no passado ou no futuro, e em algum lugar fisicamente distante daqui, Brasília constrói a utopia de um lugar em suspensão, eternamente apontando para uma alvorada que se anuncia no horizonte infinito.
Daí que, diferentemente do que fez Le Corbusier em Chandigarh, na Índia, cujos palácios brutalistas ressoam o peso e a aspereza da sua condição terceiro-mundista monumentalizada, Niemeyer tenha optado, em Brasília, por sublimar todo o peso e matéria das construções em perfis curvos e leves revestidos de branco, nos quais, muitas vezes, a estrutura está oculta. Algo que se vê também internamente, por exemplo, nas paredes inclinadas e nas cascas curvas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, que se transformam em fundo infinito azul pela continuidade com o piso do carpete que se levanta. Um futuro sem presente, em suspenso, como um eterno salto a ser dado pela modernidade por sobre o passado colonial e escravista do país, por sobre sua herança rural e oligárquica, e sua eterna desigualdade social.
Tudo isso se acentua nas recorrentes imagens do Alvorada vazio, que juntamente com a Esplanada dos Ministérios e seu horizonte constituem uma espécie de leitmotiv do filme. O que mais inquieta nessas imagens, em toda carga de beleza amarga que trazem, não é a ideia já cliché de uma solidão do poder encastelado, acentuada pela insônia de Michel Temer, que confessa não conseguir dormir ali por pressentir fantasmas. Museus melancólicos de uma modernidade sem povo?
Esse, aliás, é um dos poucos deslizes do filme, que repete a conhecida crítica à distância e à impermeabilidade de Brasília em relação ao povo, isto é, ao resto do Brasil, quando, na verdade, os espaços públicos da cidade têm sido palco de importantes manifestações populares nas últimas décadas, tais como em junho de 2013, ou na posse de Lula, dez anos antes. ,Além disso, a localização geográfica da capital, ao contrário do que se diz, favorece a acessibilidade de muitas populações vindas do norte, do nordeste e do centro-oeste do país, tais como povos indígenas, por exemplo.
Não é esta, portanto, a razão do vazio.O que mais incomoda nos palácios vazios é a sua aparição como metáfora de um pacto falhado: o pacto social entre o povo e o poder, ou entre as classes populares e a elite econômica. Pacto cuja medula, no nascedouro mesmo da arquitetura e do urbanismo modernos, correspondia à construção de um Estado de Bem-Estar Social. Mas imediatamente após a inauguração de Brasília, a cidade é tomada por militares, e como não há pacto sem democracia, o sonho é adiado. O movimento pelas Diretas Já, a emergência de novas lideranças populares, e o estabelecimento da chamada Nova República pareciam indicar um caminho de pactuação democrática, reforçada com o anúncio da “conciliação” que viabiliza a eleição de Lula em 2002.
Mas não… O pacto é rompido. Ou melhor: de repente é percebido como ilusório, ou mirífico.
É isso que assombra aqueles impecáveis espaços vazios circundados de varandas, e que se manifesta também, aí de maneira agônica, em outra cena crucial do filme: o muro provisoriamente construído na Esplanada dos Ministérios para separar os grupos adversários no dia da votação do impeachment de Dilma pelos deputados em 2016. Esse muro, que está no cartaz do filme, não simboliza apenas um país dividido pelo ódio. Ele é a própria vertigem aludida no título do documentário: o colapso daquele pacto representado pelo espaço público moderno consubstanciado em Brasília na forma de uma grande esplanada livre, pontuada de forma simétrica por edifícios que representam a equivalência democrática no centro simbólico do país. Um espaço que, por ser igualmente de todos, seria capaz de mediar e equalizar as diferenças da sociedade.
No entanto, parece que algo que nunca mudou durante esse tempo todo e reivindica agora sua presença. Senzala, coronel e capitão do mato não são eliminados por milagre pelas curvas brancas e horizontes abertos dos palácios e dos espaços públicos.
Um final? Mesmo com todo o cenário distópico que tomou a cena, Brasília continua lá, desafiando o tempo, com suas superquadras abertas e sem cercas, num país em que tudo vira condomínio fechado , securitizado e controlado com violência. No contexto de imensa regressão política e social que vivemos hoje, o filme de Petra Costa nos ajuda a olhar para o nosso passado recente de uma forma mais organizada. E, a partir daí, reunir forças para as lutas que hão de vir. Apostando que um dia possamos romper o eterno ciclo de Sísifo, condenado a sempre recomeçar do zero empurrando a pedra ladeira acima (a rampa do Palácio do Planalto?), e desfrutar verdadeiramente dos amplos espaços abertos e planos de Brasília: o lugar horizontal do verdadeiro convívio democrático entre todos.
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