Marina Kohler Harkot
A mais nova empresa de bicicletas compartilhadas a iniciar sua operação em São Paulo, a Yellow Bikes, prometia ser diferente: você poderia pegar a bicicleta onde quisesse e usá-la por toda a cidade, sem depender de estações fixas para estacionar. Muitos aderiram, mas logo veio a novidade: as amarelinhas só podem ser utilizadas em uma região da cidade — a mesma onde as outras empresas já atuam.
A política pública municipal que incentiva o compartilhamento das bicicletas exige que toda a cidade seja contemplada, mas, hoje, apenas quem mora nas áreas mais ricas da cidade usufruem do serviço. Faz sentido estimular esse tipo de atendimento, que privilegia quem já tem acesso farto ao transporte?
Em 2017, foi promulgado o decreto nº 57.889, que regulamentou o compartilhamento de bicicletas nas ruas de São Paulo. O decreto se baseou na experiência que a cidade vem acumulando desde 2012 com sistemas de bicicletas compartilhadas, o Bike Sampa e o Ciclo Sampa, e com debates sobre mobilidade ativa, especialmente no âmbito da Câmara Temática da Bicicleta (CTB), que tem membros da sociedade civil e integra o Conselho Municipal de Trânsito e Transporte (CMTT). O decreto também nasceu do desejo de abrir o mercado e possibilitar a exploração desse tipo de serviço por várias empresas, assim como aconteceu com a regulamentação dos serviços de transporte por aplicativo, como Uber e 99.
O texto se baseou em nota técnica elaborada pela Secretaria Municipal de Mobilidade e Transportes e buscou não apenas regulamentar o serviço, mas democratizar o acesso ao sistema e integrá-lo aos demais modos de transporte existentes na cidade, trazendo referências do Plano de Mobilidade de São Paulo de 2015. A nota ressalta que o serviço deve estar disponível em todas as regiões da cidade, de modo a ter a eficiência desejada. A nota ressalta a complexidade de operar sistemas como esse em uma cidade do tamanho de São Paulo, mas, apesar do desafio, as empresas não parecem ter compreendido que o serviço deveria abarcar necessidades e interesses públicos, além de seus próprios interesses privados.
Nesse contexto, em agosto, surgiram as bicicletas Yellow, que ficam espalhadas pela cidade, paradas nas calçadas e por vezes nas ruas — como se não tivessem dono e pudessem ser levadas por qualquer passante. Na teoria, elas podem ser retiradas e estacionadas em qualquer ponto de São Paulo, desde que o usuário tenha um smartphone com o aplicativo da companhia instalado. Também é preciso manter o GPS ligado durante toda a viagem. A viagem tem um custo de R$ 1 por cada 15 minutos, debitados dos créditos adquiridos com cartão de crédito. Mas, caso o usuário deixe a bicicleta fora do perímetro de interesse da empresa, o valor é bem mais salgado: são cobrados R$ 30 para estacionamentos fora da área devida.
Essa última regra é uma novidade. Nos dois primeiros meses de operação, a possibilidade de usar uma bicicleta compartilhada sem estação (ou dockless), em que dava para começar e terminar a viagem onde fosse necessário, era tentadora. Mas vários problemas foram identificados logo nas primeiras semanas: falta de confiabilidade no GPS embarcado; localização errada das bicicletas no mapa do aplicativo; fragilidade das bicicletas, que rapidamente apareceram quebradas; e a exigência do cartão de crédito, que acaba sendo uma barreira de acesso. Frente aos desafios de operar em uma cidade de dimensões imensas, a Yellow optou por seguir o mesmo caminho que os outros dois sistemas de bicicleta compartilhada existentes na capital paulista e restringiu sua área de atuação ao Quadrante Sudoeste, região entre os arredores das avenidas Paulista e Brigadeiro Faria Lima, famosa por ser o centro econômico-financeiro da cidade.
A crítica à área de operação concentrada ao redor das Avenidas Faria Lima e Juscelino Kubitschek já havia sido feita pela equipe do LabCidade quando da reformulação do Bike Sampa: o sistema de bicicletas compartilhadas patrocinado por um banco havia chegado, nos anos anteriores de operação, a bairros do início da Zona Leste, como Penha e Belém, porém, depois da renovação tecnológica em 2018, ficou restrito ao Quadrante Sudoeste.
A partir de outubro, São Paulo passou a contar com três sistemas de bicicleta compartilhadas operando mais ou menos na mesma área da cidade, deixando um enorme deserto de oferta de bicicletas compartilhadas nas zonas Leste, Norte, Sul e Centro. Assim, os usuários que vinham utilizando as bicicletas sem estação como um bem-vindo recurso para fazer o trajeto da chamada “última milha” em bairros fora do Quadrante Sudoeste – entre a estação de metrô, trem, terminal ou ponto de ônibus e o destino final, um dos principais gargalos do sistema de transporte público de São Paulo – tiveram que rapidamente abandonar essa possibilidade.
Nos últimos anos, os sistemas dockless invadiram cidades mundo afora, muitas vezes sendo raiz de conflitos em torno da frota exagerada de bicicletas concentradas em pouco espaço, da maneira caótica de estacionar nas calçadas atrapalhando o trânsito de pedestres e da má qualidade das bicicletas, que rapidamente viram lixo jogado pelas ruas das cidades. Na China, há fotos de terrenos lotados de bicicletas descartadas.
Ainda há que se aguardar para saber qual será o futuro da Yellow e das bicicletas compartilhadas em São Paulo. Por enquanto, elas têm servido à lógica do marketing amigo do meio ambiente (greenwashing) em regiões privilegiadas da cidade, driblando a Lei Cidade Limpa. Ainda haverá de surgir um serviço que deseja efetivamente ser uma solução de mobilidade complementar ao sistema de transporte público e que pode realmente fazer a diferença na última milha das viagens? Por fim, se coloca uma importante pergunta relacionada ao papel do Estado: de que maneira a Prefeitura de São Paulo vai atuar e colocar em prática a regulamentação criada por ela mesma, a fim de que os interesses privados das operadoras não se sobreponham aos interesses públicos?
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