Por Letícia Lemos*
O novo sistema de compartilhamento de bicicletas de São Paulo foi inaugurado no último
dia 30 de janeiro. Ele traz alguns avanços tecnológicos que, segundo pregam, vai melhorar a qualidade do serviço. Houve também um adensamento do sistema, ou seja, foram implantadas estações mais próximas entre si, o que é essencial para torná-lo mais atraente, pois evita que os interessados em utilizar as bicicletas sejam obrigados a andar distâncias excessivas.
A massa densa de estações, entretanto, está localizada ao longo do Jardim Paulistano, entre a Avenida Faria Lima e a Marginal Pinheiros, e no Itaim Bibi, locais com a maior concentração de renda da cidade, as melhores condições urbanas, e que, historicamente,
são o centro da oferta de infraestrutura. Desse modo, o novo sistema segue a mesma lógica estruturante das cidades brasileiras, descrita pelo professor Flávio Villaça no livro “Espaço Intra-Urbano no Brasil”, de concentração de investimentos nos bairros de classes de mais alta renda, o “centro” das elites.
É verdade que há uma promessa de instalação de algumas estações em cinco terminais periféricos onde as bicicletas serão emprestadas por 12 horas. Assim, essas bicicletas poderão ser usadas para fazer a conexão entre o sistema de transporte público e a residência. A ideia é que as pessoas possam pegar a bicicleta para chegar em casa no final do dia, ficar com ela durante a noite e devolver de manhã, quando for de casa para pegar o transporte público. No entanto, isso ainda é uma promessa – ou seja, priorizaram o sistema no “centro” – e somente 500 bicicletas estarão disponíveis nessas poucas cinco estações, números totalmente incompatíveis com a massa de pessoas que faz esses percursos diariamente.
Questões sobre localização no ambiente urbano já foram problematizadas em outros posts aqui no observaSP, inclusive dentro do tema cicloviário, tratando de questões de gênero, no texto “Mulheres de bicicleta em São Paulo: da ‘cidade imoral’ para a ‘cidade conquistada’”, e sobre as mortes de ciclistas, no texto “A geografia dos acidentes fatais com bicicleta em São Paulo”. Além disso, estudo recente da nossa equipe mostra que, segundo a Pesquisa Origem-Destino (OD) do Metrô, a maior parte dos ciclistas, homens e mulheres, reside fora desse território de elite.
Essa concentração não se resume ao sistema de bicicletas compartilhadas. Apesar de os dados da OD mostrarem demanda maior em zonas periféricas, a infraestrutura para circulação de bicicletas também começou a ser implantada nas zonas com maior concentração de renda, e continuou dessa forma até a sociedade civil pressionar por expansão da rede, com campanhas como a #CicloviaNaPeriferia. A partir de então, alguns trechos foram construídos fora do “centro” das elites, mas a diferença de oferta ainda é gritante.
Além da questão de localização, o novo sistema manteve a necessidade de uso de cartão de crédito para realizar o cadastramento, continuando a excluir parte da população que não tem acesso a serviços de crédito bancário. Mas, na verdade, conseguiu piorar em relação ao anterior, no qual era debitado um valor simbólico no momento do cadastro, pois quem quiser usar o sistema atual deverá pagar por um dos planos oferecidos pela empresa – R$8 para um dia, R$15 para três dias, R$20 o mensal e R$160 para um ano. Estes planos valem somente para viagens com duração de, no máximo, 60 minutos, sendo necessário esperar 15 minutos de intervalo para pegar uma nova bicicleta após esse período, caso contrário, são cobrados R$5 por hora adicional.
Cabe lembrar que o banco responsável pela oferta do serviço está tendo um ganho excepcional com propaganda no espaço público. Isso é uma bela vantagem considerando
que a Lei Cidade Limpa proibiu essa prática desde 2006, exceto como contrapartida, como no caso das bicicletas compartilhadas: o banco oferece o serviço e, em troca, a Prefeitura permite que a sua marca seja estampada nas bicicletas e nas estações.
No novo sistema foi mantida também a possibilidade de usar o Bilhete Único para retirar a bicicleta, da mesma forma que já funcionava anteriormente. Assim, o Bilhete Único continua sendo somente mais uma maneira de liberar a bicicleta, uma vez que não elimina a necessidade de uso do cartão de crédito e o pagamento do plano. Ou seja, o sistema de compartilhamento de bicicletas permanece sem ser integrado de fato ao transporte público.
Além disso, ainda que o valor do plano anual seja proporcionalmente mais acessível, a simples cobrança de plano já é excludente, pois muita gente não pode pagar esse valor de uma só vez. O que existe, de fato, é um acúmulo de restrições: área com oferta de estações extremamente restrita aos bairros de elite, exigência de possuir cartão de crédito, ausência de integração real com o transporte público e necessidade de pagamento de plano para usar o sistema. Ou seja, algo que já era ruim para a população mais pobre ficou ainda pior.
Assim, a “evolução” do sistema parece se limitar a avanços tecnológicos, mas, para a população em geral, com exceção dos moradores de alta renda do Itaim Bibi e do entorno do Shopping Iguatemi, mostra-se uma involução.
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* Letícia Lemos é arquiteta, urbanista, mestra e doutoranda em Planejamento Urbano e Regional pela FAU USP. Possui especialização em Mobilidade Sustentável em Países em Desenvolvimento pela United Nations Institute for Training and Research. Pesquisa mobilidade sustentável com foco nos modos ativos, particularmente a bicicleta, como modo de transporte urbano, e regulação urbanística e políticas públicas urbanas que influem sobre esses modos. Atualmente trabalha como pesquisadora do ObservaSP junto ao LabCidade da FAU USP. Lattes | Academia.edu
Obrigado, Leticia!
Republicou isso em Cidades in Comume comentado:
Iniciou-se a construção de análises mais robustas, sistêmicas e problematizadoras sobre essa nova caixa preta da mobilidade,.
A lógica mercantilista
prevalece em todas os diferentes modos. Veremos o que virá com os pedestres…
O que seria necessário: mais bicicletários e paraciclos, inclusive convertendo os pontos do BikeSampa em verdadeiros “estacionamentos gratuitos” de bicicletas para quem tem (e precisa).
O resto, desculpem dizer, é perfumaria e “marketing”. Não resolve nada.