Débora Ungaretti, Guilherme Lobo Pecoral, Júlia de Sá, Renato Abramowicz Santos, Talita Anzei Gonsales, Aluízio Marino*
Em março deste ano, completaram-se dois anos de pandemia de Covid-19 no Brasil, caracterizada pelo aprofundamento da crise habitacional e acirramento dos conflitos fundiários. A mobilização de uma série de resistências contra processos que levam a despejos e remoções, em especial a Campanha Despejo Zero, que articulou, em diferentes escalas, movimentos, comunidades e grupos de pesquisa, reduziu a proporção desses impactos e foi capaz de proteger inúmeras famílias de perderem suas casas. Um dos seus importantes resultados foi a decisão pela suspensão de despejos e remoções pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 828, atualmente com vigência até 31 de outubro deste ano. A decisão tem sido fundamental para proteger inúmeras famílias, porém não suficiente, porque, além de estar sendo sistematicamente descumprida, não protege ocupações recentes e áreas de risco. Sem falar que pouco se sabe como as coisas acontecerão terminado seu prazo.
Apesar dessas mobilizações, conquistas, e da gravidade em remover pessoas em um contexto de crise sanitária, em que a orientação principal foi ficar em casa para se proteger do vírus, o poder público e atores privados seguiram promovendo remoções e despejando famílias. Realizamos aqui um balanço das remoções e também das resistências nesses dois anos de pandemia no Brasil e, mais especificamente, na Região Metropolitana de São Paulo: quais foram as repercussões concretas das lutas e como conseguiram barrar tantas ameaças de remoção e assim garantir a permanência de milhares de famílias; quem foram as pessoas atingidas; quantas remoções de fato aconteceram e onde; e, ainda, promovidas por quem e com quais justificativas.
Entre abril de 2020 e março de 2022, mapeamos ao menos 64 remoções na RMSP. Ao menos 6.238 famílias foram impactadas em diferentes áreas da cidade, como é possível ver no mapa abaixo; sabemos, no entanto, que os números podem ser ainda maiores, considerando a falta de dados e informações que envolve o fenômeno das remoções.
O número de remoções é menor em comparação ao período anterior à pandemia, o que mostra que foram importantes os resultados da mobilização social, apesar da persistência desses procedimentos e de violações de direitos em plena crise sanitária. Entre março de 2018 e março de 2020 (portanto, pré pandemia) houve 70 remoções na RMSP, com ao menos 23.268 famílias removidas; enquanto de março de 2020 ao mesmo mês de 2022, como vimos, foram 64 casos, correspondentes a pelo menos 6.238 famílias.
Ou seja, neste último mapeamento, o número registrado de famílias removidas é bem menor. Por um lado, é possível inferir que, ainda que tenham persistido de forma grave e violenta, as remoções na pandemia tiveram, de modo geral, proporções menores, em razão da pressão popular e midiática a partir de redes de resistência, como, por exemplo, a Campanha Despejo Zero, mas também com apoio de amplos setores da sociedade e da opinião pública. Por outro lado, essa queda reflete a dificuldade de acesso a informações que adveio com as restrições do período atual, pois em 14 casos não sabemos quantas famílias foram atingidas, enquanto no período anterior, em 8 casos não tínhamos essa informação. As 3 maiores remoções da pandemia, em quantidade de famílias, totalizam 3.200 atingidos, enquanto as 3 maiores entre os 2 anos anteriores à crise, chegam ao número de 12.820 famílias removidas.
Apesar da proximidade na quantidade de remoções entre os períodos, não podemos subestimar o impacto das redes de resistência que se formaram, se fortaleceram ou rearranjaram durante a pandemia, e que com sua ação e mobilização conseguiram suspender ao menos 38 ameaças na RMSP, no mesmo período. O mapeamento aponta sua relação com campanhas e redes construídas por movimentos de moradia, advogados/as populares e operadores do direito, entidades, laboratórios de pesquisa e outros coletivos, que se articularam a partir de territórios e comunidades ameaçadas.
As mobilizações sociais e ações de resistência que se consolidaram em torno da defesa da vida no campo e na cidade encontraram convergência, ressonância e amplificação na Campanha nacional Despejo Zero, criada por movimentos e organizações sociais em junho de 2020, que levou à conquista de resultados importantes pelo direito à moradia de inúmeras famílias ameaçadas no decorrer da pandemia, como, por exemplo, na decisão do Supremo Tribunal Federal pela suspensão dos despejos, remoções e desocupações, e na aprovação de leis.
Na RMSP, o Observatório de Remoções registrou a ocorrência de 38 suspensões de ameaças de remoção em 2 anos de pandemia, o que representa ao menos 5.931 famílias que poderiam ter sido removidas, mas conquistaram a suspensão ou adiamento do processo judicial ou administrativo que as ameaçava.
Esses movimentos refletem a construção de uma ampla rede de solidariedade e de trabalho militante entre pessoas e organizações de todo o país. A luta pela suspensão dos despejos se deu especialmente tomando como fundamentais as esferas do cuidado e da defesa da vida – que exigem na sua construção, manutenção e reprodução formas e lógicas coletivas, multidisciplinares e multiescalares. Nesse contexto, a Campanha Despejo Zero conseguiu se sustentar por meio de sua capilarização em todo o território brasileiro, colocando em contato e diálogo diferentes movimentos, coletivos e atores sociais, entre escalas locais, regionais, nacionais e até internacionais. Essa luta não se restringe apenas ao objetivo imediato de suspensão das remoções; mas busca conquistar também uma permanência qualificada, adequada e democrática, bem como uma construção que vá além da situação de emergência, que questione e transforme as formas de intervenção (e solução) atuais em conflitos fundiários.
Nossos dados ainda informam as principais justificativas mobilizadas para a remoção na pandemia, os procedimentos aplicados, suas características e agentes. Nesse sentido, cerca de 64% das remoções (41 dos 64 casos) foram motivadas por conflitos de posse, situações em que o direito dos moradores à posse é questionado por algum outro interessado no imóvel, por vezes sobrepostos a justificativas de obras públicas, área de risco ou proteção ambiental. Em segundo lugar, aparece o fator da área de risco como justificativa mobilizada para a remoção (10 casos); seguida por área de proteção ambiental (6); faixa de domínio de rodovia (2); parcerias público-privadas (1), além de outras 4 remoções sem esta informação. Cabe apontar que as remoções por risco são uma das exceções previstas pela decisão do STF na ADPF 828, que suspende remoções na pandemia, de forma que podem ocorrer, sob certas condições, mesmo sob a vigência da medida. Assim, essa justificativa tem sido amplamente empregada para promover remoções, mesmo que por vezes de forma arbitrária, descumprindo a condição de oferta de alternativa habitacional às famílias removidas e sem as devidas análises de gerenciamento de riscos.
Em 52% das remoções, ou 32 casos do total, o procedimento utilizado foi a ação de reintegração de posse, seguida pelas remoções extrajudiciais, que levaram a 33%, ou 22 casos de remoções, registradas na RMSP, além de outros 8 casos sem este dado.
Entre os agentes que executaram as remoções, destaca-se a Polícia Militar, em 29 dos casos registrados; seguida pela Guarda Civil Metropolitana (GCM) (13); Subprefeituras (8); agentes privados (3); Defesa Civil (3); Polícia Civil (2); Policiais à paisana (1); e Polícia Militar Ambiental (1). Os agentes envolvidos variam de caso a caso, porém em geral possuem relação com as justificativas e procedimentos. As remoções judiciais, como as reintegrações de posse, que ocorreram na maioria das remoções, costumam contar com o apoio da Polícia Militar no cumprimento dos mandados judiciais. Já as remoções realizadas por Subprefeituras e GCM geralmente decorrem de decisões administrativas, ligadas a discricionariedade e poder de polícia de gestores públicos, e foram justificadas por procedimentos de zeladoria urbana, áreas de risco (quando também há presença da Defesa Civil) ou proteção ambiental (quando também há presença da Polícia Ambiental). No mais, vale alertar para a gravidade daquelas remoções realizadas por agentes privados, que apontam para formas especiais de controle do espaço baseadas na violência, inclusive com relatos de presença de policiais à paisana e da polícia civil.
Nesses diferentes contextos, os principais meios utilizados para remover foram a demolição da moradia e dos bens com tratores e retroescavadeiras, em 18 casos, comum tanto em remoções judiciais quanto administrativas; a aplicação de bombas de gás e de efeito moral (5), relacionadas à atividade policial na retirada das famílias; além de relatos de sequestro de bens (2); ameaça com arma de fogo (1); e corte de energia elétrica (1).
Nota-se ainda que 41% das remoções, ou 26 casos do total registrado, foram realizadas em imóveis de propriedade pública, enquanto 33% (21 casos) em propriedade privada. Em relação às tipologias, 67% (ou 43 remoções) foram realizadas em terrenos sem edificações construídas antes da ocupação, com a presença de moradias improvisadas e casas de alvenaria autoconstruídas; enquanto 28% (ou 18 remoções) ocorreram em edificações de titulação diversa que foram ocupadas, como prédios ociosos no centro de São Paulo ou empreendimentos habitacionais públicos não entregues.
Por fim, importante mencionar que 35% das remoções registradas nesse contexto, equivalente a 21 casos, recaíram sobre ocupações recentes, que se instalaram durante a pandemia e, assim, ficaram em parte desprotegidas pela mencionada ADPF 828, uma vez que ela só suspendeu remoções de ocupações instaladas até março de 2021. Contudo, na maioria dos casos (34) não temos informação de quando se constituiu a ocupação removida. As demais 10 áreas de remoção eram de ocupações anteriores à pandemia, sendo que algumas delas tinham décadas de existência.
*Pesquisadoras/es do Observatório de Remoções
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