Deiny Façanha Costa e Paula Freire Santoro*
Com este texto damos sequência a uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade e parceiros no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, a ser realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram levemente alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.
O planejamento urbano do município de São Paulo foi historicamente pautado por uma relação com o sistema viário. Os primeiros regramentos para a verticalização, entre 1920 a 1935, envolveram controle de gabarito, como a determinação de alturas em relação à largura da via na área central da cidade. O prefeito Prestes Maia (1938-1945) defendeu “uma verticalização no ‘lugar certo’, onde o viário permitisse” (SOMEKH, 1997, p. 53) e a abertura de avenidas acompanhada da renovação dos padrões de ocupação, permitindo a verticalização escalonada. Nos anos 1950, Anhaia Mello, preocupado com a verticalização excessiva e sobrecarga das vias e infraestrutura, passou a utilizar o Coeficiente de Aproveitamento – medida que informa a área possível de ser construída em relação com a área do terreno (p. ex. CA 4 permite construir 4 vezes a área do terreno) – para limitar a ocupação. Já o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de 1971 propôs a verticalização em eixos de transporte existentes ou previstos com a intenção de implantação de atividades comerciais e industriais próximas a pólos desenvolvidos e eixos de transporte (CANUTTI, 2000, p. 78).
Recentemente esta relação esteve envolta em novos conceitos. Um deles é o de Desenvolvimento Orientado pelo Transporte (DOT) (em inglês, transit-oriented development – TOD), disseminado nos Estados Unidos no âmbito de um urbanismo que superaria o crescimento suburbano rodoviário de baixa densidade habitacional. Os DOTs revertem o modelo baseado no transporte rodoviário, altamente poluente e ambientalmente predador, considerado “distante, disperso e desconectado” (WRI, 2018) e insustentável, e visam integrar a política de mobilidade com as de urbanização. Uma estratégia adotada é a de fortalecer os sistemas estruturais de transporte coletivo e, nas áreas do entorno das linhas e estações, promover o aumento da densidade construtiva e populacional, a diversidade de usos no espaço e a diversidade social e de tipologia de habitação – medidas que geram mais demanda para o transporte coletivo e valorizam a mobilidade ativa (a pé e por bicicleta) e promovem a construção de espaços públicos de qualidade (CERVERO, 1993). Espera-se que este adensamento venha acompanhado de mudança modal (dos individuais para os modos coletivos), estimulando o uso dos transportes coletivos e a mudança nos fluxos internos das cidades.
Fruto da trajetória histórica, ou inspirado no conceito de DOTs – ou ainda nos debates dos impactos da verticalização rodoviarista – o Plano Diretor Estratégico de 2002 (PDE 2002) criava uma rede estrutural de eixos e pólos de centralidades com faixa de largura de 300 metros definidas como Áreas de Intervenção Urbana (AIU). Seu objetivo era qualificar os eixos e seu entorno, permitir o adensamento construtivo e, através da venda de Outorga Onerosa do Potencial Construtivo adicional para o mercado imobiliário, obter recursos para implantação e melhoria do transporte público.
O Plano Diretor Estratégico de 2014 (PDE 2014), inspirado nos DOTs, propôs os Eixos de Estruturação da Transformação Urbana (EETUs), estimulando maior adensamento construtivo no entorno de estações e terminais e ao longo de eixos de mobilidade de média ou alta capacidade (corredores de ônibus, trem, metrô, monotrilho, etc.). Quando um Eixo atravessa a Macroárea de Estruturação Metropolitana (MEM), o adensamento construtivo previsto no entorno deste transporte não se aplica, criando trechos com possibilidade de adensar e outros não, no entorno da mesma linha de transporte. Isso porque, o coeficiente de aproveitamento máximo na MEM é baixo, equivalente a 2 vezes a área do terreno, podendo ser alterado com base em propostas de Projetos de Intervenção Urbana (PIUs), cujos projetos estabeleceriam a relação de mobilidade e planejamento urbano, e poderiam ou não adensar no entorno dos Eixos, mas também poderiam propor projetos urbanos para o entorno que envolvam obras, regras específicas para cada trecho do projeto, enfim, um olhar mais acurado sobre a situação local por onde estas linhas de transporte passam. No entanto, observando alguns dos PIUs propostos, como por exemplo o PIU Setor Central, vê-se que eles reproduzem a continuidade dos Eixos, com as mesmas regras (p. ex. CAmáx 4), dentro da MEM. Esperava-se, para estas regiões da MEM, com importantes infraestruturas de transporte, que seus PIUs dialogassem com outros planos metropolitanos ou municipais, como o Plano de Mobilidade de São Paulo (PlanMob 2015), o plano cicloviário, outros PIUs etc. Ou ainda, que estariam articulados com políticas como as Ruas Abertas e Áreas 40. Esperava-se, portanto, que não fossem uma simples continuação das regras e objetivos dos Eixos, mas diferenciando as áreas e formas de intervenção dentro da MEM.
Este trabalho parte desta inquietude para atingir um objetivo mais amplo de leitura da relação entre planejamento urbano e mobilidade a partir de duas diferentes propostas contidas no PDE 2014 em São Paulo:
1) os EETUs, lidos a partir de trabalhos de outros autores (DE SOUZA e SEO, 2017; BALBIM e KRAUSE, 2016; SEO, 2016; LAMOUR, 2018; NOBRE, 2016); e
2) os PIUs, cujas propostas relativas à mobilidade têm sido pouco estudadas.
O texto completo também se debruça sobre a proposta de mobilidade do Projeto de Intervenção Urbana Setor Central (PIU-SCE), atualmente em debate pelos vereadores, já que a região central de São Paulo é um importante território para se pensar um plano urbano: sua boa acessibilidade não deve ser lida apenas como a chegada de um conjunto de eixos e áreas de adensamento do tipo DOTs, mas exige uma articulação entre modais e espaços urbanos para potencialização e qualificação.
Os desafios do Centro se relacionam também com a concentração de hubs de transportes, alta densidade populacional e atividade comercial pujante, com intenso fluxo diário metropolitano perpassando o território. Como exemplo, há a formação de rodoviárias informais para acessarem o comércio de vestuário na região do Brás; os deslocamentos de ciclologística entre bairros de comércio especializado feitos em uma infraestrutura cicloviária desconexa; e os fluxos peatonais em constante conflito com modos motorizados, o que resulta em muitas vítimas de trânsito.
A hipótese é que o PIU-SC dialoga pouco com outros planos municipais ou metropolitanos e com o plano cicloviário, enquanto se articula com outros PIUs – por exemplo, com as propostas para o Arco Tietê – que reproduzem os EETUs com pouca inovação, diferenciação espacial ou articulação com outras políticas.
O trabalho traz a questão: o que o PDE deveria conter para garantir que os PIUs não sejam uma simples continuidade dos EETUs, mas tragam propostas estruturadas com outros planos, em diferentes escalas, e com um uso e ocupação urbana que, para além do adensamento construtivo, realmente enfrentasse os desafios dos planos urbanos?
* Arquiteta urbanista e mestranda na FAU-USP; Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.
REFERÊNCIAS
BALBIM, Renato; KRAUSE, Cleandro; editores. Eixos de estruturação da transformação urbana: inovação e avaliação em São Paulo. Rio de Janeiro: Ipea, 2016.
CANUCCI, Rita. O Lado Leste: o papel do planejamento urbano e suas contradições no processo de urbanização em territórios periféricos da Zona Leste. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2020.
CERVERO, Robert. Transit-Supportive Development in the United States: Experiences and Prospects. University of California at Berkeley Institute of Urban and Regional Development, 1993.
DE SOUZA, Amanda Paulista; SEO, He Nem Kim; YAMAGUTI, Rosana. Eixos de Estruturação da Transformação Urbana: possibilidades e lacunas. XVII ENANPUR. São Paulo, 2017.
LAMOUR, Quentin. Avaliação da estratégia dos eixos de estruturação da transformação urbana, do município de São Paulo, frente à teoria do desenvolvimento orientado pelo transporte (DOT). Estudo de caso: área de influência da estação Belém do Metrô. Tese de Doutorado – Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2018.
NOBRE, Eduardo Alberto Cuscé. Recuperação da valorização imobiliária para financiamento da transformação urbana. In: BARBIM, Renato; KRAUSE, Cleandro; editores. Eixos de estruturação da transformação urbana: inovação e avaliação em São Paulo. Rio de Janeiro: Ipea, 2016, p.161-216.
SANTORO, Paula Freire; WISNIK, Guilherme. Texto da exposição “De que leis é feita a verticalização em São Paulo?” curada por Paula Freire Santoro e Guilherme Wisnik, com fotos de Leonardo Finotti, exposição inserida na Bienal de Arquitetura de novembro de 2013.
SEO, He Nem Kim. Novo Plano Diretor de São Paulo e o Sistema de Mobilidade. In: PIRES, Antônio Cecílio Moreira; PIRES, Lilian Regina Gabriel Moreira (Orgs.). Mobilidade Urbana: desafios e sustentabilidade. São Paulo: Ponto e Linha, 2016.
SOMEKH, Nadia. A cidade vertical e o urbanismo modernizador. 1ª edição. São Paulo: Studio Nobel, 1997.
WRI. DOTS nos Planos Diretores: Guia para inclusão do Desenvolvimento Orientado ao Transporte Sustentável no planejamento urbano. Disponível em: <https://wribrasil.org.br/pt/publicacoes/dots-nos-planos-diretores>, acesso em 15/01/2021.
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