Por Vitor Inglez, Débora Ungaretti, Raquel Rolnik, Paula Freire Santoro, Pedro Mendonça, Ana Luíza Pacheco e Silva e Lara Giacomini (*)

Estruturação de um fundo de investimento e a generalização da alienação fiduciária nos contratos de financiamento habitacional têm levado a remoções em Cidade de Tiradentes e outras regiões de São Paulo

A política habitacional brasileira está baseada na compra de unidades por quem precisa, no modelo da casa própria, a partir do endividamento das famílias que adquirem um financiamento habitacional. Mesmo com subsídios e taxas de juros mais baixas, as crises enfrentadas pelas famílias mais pobres levam, historicamente, ao não pagamento da prestação, resultando em um alto índice de inadimplência. Assim, uma das consequências desta política é, contraditoriamente, que ela ameaça e despeja famílias, que perdem sua moradia.

Mas há novidades na ameaça em curso. A Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB-SP), que possui uma grande quantidade de mutuários – famílias responsáveis pelo pagamento do financiamento – transferiu esta “carteira de dívidas” para serem geridas pela Companhia São Paulo de Desenvolvimento e Mobilização de Ativos (SPDA). Esta colocou os imóveis em um fundo de investimento, o Fundo SPDA, que anuncia descontos para os mutuários que renegociam suas dívidas. As famílias que aderem ao desconto assinam novos contratos com cláusulas (como a alienação fiduciária, que comentaremos adiante) que têm ajudado a pressioná-los e removê-los mais eficazmente de suas moradias no caso de inadimplência.

Com essa manobra, inverte-se o objetivo da política habitacional, que é garantir casa para quem precisa, e volta-se para uma estratégia de valorização das cotas do fundo – reprimindo por meio de mecanismos agressivos a inadimplência, que é o principal risco associado aos ativos, ameaçando e removendo as famílias de suas casas –, e de utilização dos recursos para financiar projetos estratégicos da Prefeitura.

A política baseada no endividamento das famílias e a alta inadimplência

Historicamente, a inadimplência e o endividamento são consequências da política habitacional desenvolvida pela COHAB-SP e por outras companhias habitacionais do país, baseada fundamentalmente em um modelo de provisão pública de habitação popular cujo pressuposto básico é a comercialização das unidades para se tornarem propriedade privada individual por meio de longos financiamentos, que podem se estender por até 30 anos.

O peso das parcelas, reajustadas com juros, e dos custos de manutenção condominial sobre a renda das famílias mutuárias, assim como a baixa qualidade dos conjuntos habitacionais e as grandes distâncias com relação às áreas que concentram ofertas de trabalho e infraestruturas urbanas, são problemas históricos deste modelo.

Em São Paulo, nos períodos de grande produção pública de habitação desde os anos 1970, milhares de moradias foram produzidas sobre um estoque de terras nas periferias, muito concentrado na Zona Leste, para onde foi deslocada parte da população pobre, e majoritariamente negra, removida da região central da capital paulista em projetos de reestruturação urbana.

Cidade Tiradentes, onde hoje se concentram mutuários da COHAB-SP, insere-se neste contexto de expulsão da população negra e apagamento de sua história de bairros centrais, como o Bixiga, de onde foram removidas e obrigadas a aderir à aquisição da moradia via financiamento, como é o caso de algumas das famílias atualmente moradoras de conjuntos habitacionais como o Santa Etelvina, a quase 30 quilômetro de distância de seu local original de moradia.

Endividamento e inadimplência sempre acompanharam este modelo, estando documentados, por exemplo, em 2008, quando a COHAB-SP, pouco após o início do Programa 1000 – um de seus planos de recuperação de créditos via refinanciamento das dívidas –, contabilizava 53.452 mutuários, dos quais 41.791 eram inadimplentes (78% do total).

O Programa 1000, em Cidade Tiradentes, voltava-se para 14 mil mutuários do Conjunto Santa Etelvina e mais cerca de 11 mil mutuários de outros conjuntos do Complexo, propunha “condições especiais para o pagamento das prestações, diminuindo valores, não cobrando nenhum juro e respeitando a realidade de cada empreendimento da Companhia”. O valor da prestação era calculado com base no valor de avaliação do imóvel, em refinanciamentos de até 240 meses.

A transferência das dívidas dos mutuários da COHAB para a SPDA

Nos últimos anos, contudo, a expectativa futura de pagamento das prestações pelos mutuários, tanto adimplentes quanto inadimplentes, converteu-se em um produto financeiro, agravando ainda mais a situação destas famílias. Mas como isso se deu?

Primeiro, a Prefeitura de São Paulo passou a carteira de dívida dos mutuários da COHAB-SP para uma sociedade de economia mista. Em 2016, 31.492 contratos de financiamento habitacional da Companhia foram cedidos pela Prefeitura a uma sociedade de economia mista por ela controlada: a SPDA, cuja finalidade é otimizar a gestão de ativos financeiros municipais para financiar seus projetos estratégicos.

A SPDA pode, para tanto, comprar e vender ativos, créditos, títulos e valores mobiliários, geri-los e dá-los em garantia, inclusive em contratos de parcerias público-privadas. No caso, a companhia constituiu um Fundo de Investimento em Direitos Creditórios (“FIDC”) – o FIDC SPDA que recebeu os créditos das dívidas das famílias mutuárias –, registrado na bolsa de valores e do qual é quotista exclusiva.

Assim, o fundo passou a fazer a gestão destas dívidas reunidas em uma “carteira imobiliária” que agrupa mais de 31 mil financiamentos habitacionais da COHAB-SP. Essas dívidas constituem o “ativo financeiro” do fundo e a expectativa de pagamento das prestações é oferecida como garantia contratual das parcerias público-privadas habitacionais municipais nos 11 Contratos de Concessão Administrativa (os Editais de PPP COHAB-SP 001/2018 e COHAB-SP 001/2020).

Este fundo de investimento, o FIDC SPDA, busca a valorização de seu “ativo”. Nos termos declarados de seu regulamento, seu objetivo é “proporcionar aos Cotistas a valorização de suas Cotas, no longo prazo”. E um de seus maiores fatores de “risco” é o de que as famílias mutuárias não consigam pagar suas dívidas.

De modo geral, o índice de inadimplência é determinante para os resultados do fundo, impactando a valorização de suas cotas. Assim, esta forma de estruturação, que surge da transferência da COHAB-SP à SPDA, com a criação de um fundo de investimento em direitos creditórios, exige a repressão da inadimplência ainda que de modo a implicar o contrassenso evidente de promover remoções e agravar o déficit habitacional que se declara combater.

A renegociação das dívidas dos mutuários com a inclusão da alienação fiduciária

Diminuir a inadimplência tornou-se urgente para evitar “risco” e garantir a rentabilidade dos ativos, e com isso assistimos à renegociação das dívidas e as ameaças de remoção.
Neste contexto, um segundo passo foi adotar uma política de cobranças que envolveu a transferência da gestão das dívidas para um agente de cobrança privado, vindo do mercado financeiro com experiência em recuperação de créditos, como já dito anteriormente. Este, ao renegociar as dívidas com as famílias, inclui nos novos contratos de dívidas renegociadas a cláusula de alienação fiduciária nos contratos de financiamento habitacional.

Alienação fiduciária é um mecanismo jurídico contratual cujo propósito é facilitar a realização de um crédito, permitindo a retomada da garantia de uma dívida sem mediação judicial: no caso, o imóvel da família mutuária, garantia de seu financiamento habitacional, é posto pelo fundo credor em leilões onde qualquer pessoa pode arrematá-lo, desocupá-lo e, então, tomar posse.
Esta cláusula, evidentemente incompatível com os objetivos da política habitacional e que jamais deveria constar em seus contratos de financiamento, generalizou-se desde que o fundo de investimento foi estruturado: dos 31.492 contratos cedidos, 3.434 – ou seja, um pouco mais de 10% – tinham cláusula de alienação fiduciária, número que quase triplicou, atingindo atualmente 9.600 contratos.

Se o mutuário não paga a dívida, o imóvel vai a leilão

Nos contratos com cláusula de alienação fiduciária, esgotadas as cobranças administrativas, se a família mutuária não conseguir pagar a dívida total em um prazo fatal de 15 dias – depois de ter seu nome e CPF negativados junto aos órgãos de proteção do crédito (SPC, SERASA, por exemplo) –, a propriedade do imóvel é consolidada em nome do Fundo, para posterior realização de leilão.
No leilão, o imóvel pode ser arrematado por qualquer pessoa, inclusive por imobiliárias – o que configura outra incompatibilidade flagrante com a política habitacional, uma vez que não há controle público sobre o arrematante, se atende ou não aos critérios da política habitacional.

Pelas regras dos leilões – organizados em dois turnos, havendo depreciação do preço na segunda tentativa – os imóveis leiloados (originalmente destinados à política habitacional) podem ser arrematados por valores ínfimos, que em alguns casos baixam a R$ 30 mil, fomentando negócios imobiliários de caráter especulativo. O Observatório de Remoções identificou o caso de uma imobiliária local que já arrematou 8 imóveis em leilão e está promovendo a remoção das famílias moradoras, todas em Cidade Tiradentes.

Segundo as informações de março deste ano, desde a constituição do Fundo, haviam sido realizados 49 leilões administrativos, dos quais 41 imóveis foram comprados por pessoas físicas e os demais, jurídicas. Nas plataformas de leilões de imóveis é possível verificar dezenas de novos leilões em andamento. E denúncias do Movimento Reaja dão conta de diversos casos de imissão na posse iminente, quando o imóvel arrematado é desocupado pelo comprador, despejando a família moradora.

Com todos estes leilões, a SPDA “recuperou” o valor total de R$ 4.343.841,65, uma média de R$ 88.649,00 por imóvel retomado. Contudo, cada uma das famílias removidas neste processo volta a compor o déficit habitacional!

O aumento da inadimplência e a ameaça de remoção e perda da moradia

Dos 31.492 contratos recebidos, a SPDA informou, em 27/03/2024, que 7.898 estavam inadimplentes. Contudo, em resposta posterior, informou, em 02 de julho, que o número de contratos inadimplentes havia chegado a 10.555. Ou seja, houve um crescimento rápido e substancial das famílias mutuárias em condição de inadimplência dentro deste novo modelo.

Estas pessoas, muitas delas idosas, aposentadas, em dificuldades econômicas decorrentes do desemprego, de doenças e de uma miríade de outras situações de vulnerabilidade, estão sujeitas a uma política de cobrança ameaçadora – valendo-se desde a negativação do nome e CPF junto ao sistema de proteção do crédito, até os leilões e remoções –, que tem aumentado em Cidade Tiradentes, onde as famílias atingidas se organizam no Movimento Reaja, reivindicando uma política mais justa e adequada ao direito à moradia.

Em parceria com o Núcleo Especializado de Habitação e Urbanismo da Defensoria Pública estadual, o Observatório de Remoções do LabCidade entrevistou 37 famílias mutuárias que buscaram atendimento judicial da Defensoria Pública para intervir em seus processos de cobrança e execução da dívida. No geral, a maioria das famílias, de renda domiciliar total de até dois salários mínimos, encontra-se vulnerabilizada economicamente em decorrência da redução da renda familiar, desemprego, falecimento, dentre outras situações.

Apesar do interesse em realizar acordo para regularizar sua situação, a maioria das famílias conhece pouco do contrato e não encontra disposição de negociação por parte da SPDA. Confrontadas com dívidas elevadas, sem a possibilidade de parcelamento, muitas delas já têm seus imóveis levados a leilão, em decorrência da cláusula de alienação fiduciária inserida nos contratos.

Em suma, esse novo modelo envolve (i) a financeirização da carteira de mutuários da COHAB-SP via SPDA e fundo de investimento; (ii) a inclusão de cláusulas nos contratos de renegociação de dívidas como a alienação fiduciária, que pressionam o pagamento, (iii) ameaçam e removem de forma mais rápida e eficiente; e (iv) o leilão dos imóveis para quaisquer interessados.
Todo este processo afasta os resultados da política habitacional ainda mais das finalidades almejadas e agrava o déficit habitacional, que deveria combater. Ao submeter a política pública de forma ainda mais profunda e radical à lógica das finanças, transforma dívidas e contrato de financiamento habitacional da COHAB em ativo financeiro, gerido segundo a lógica da máxima valorização das cotas de um fundo de investimento, e ainda os converte em garantia das parcerias público-privadas habitacionais do município – que, como relatamos anteriormente, promovem, elas próprias, remoções em massa.

Ou seja, a financeirização da carteira de mutuários da COHAB-SP agrava a condição destas famílias, as ameaça e remove, enquanto ainda é oferecida aos “parceiros privados” das PPPs como garantia contratual de políticas de reestruturação urbana que promovem. O objetivo não é assegurar o direito à moradia, e sim valorizar uma carteira imobiliária por meio da redução do índice de inadimplência, custe o que custar. Mais uma vez aqui, a política habitacional não parece ter como objetivo atender com moradia quem mais precisa, mas fazer circular um capital financeiro, garantindo sua multiplicação.

 

(*) Vitor Inglez é doutorando da FAUUSP e pesquisador do LabCidade; Débora Ungarreti é doutora pela FAUUSP e pesquisadora no LabCidade; Raquel Rolnik é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade; Paula Freire Santoro é professora na FAUUSP e coordenadora do LabCidade; Pedro Mendonça é arquiteto e urbanista pela FAUUSP e pesquisador do LabCidade; Ana Luíza Pacheco e Silva é graduanda da FAUUSP e pesquisadora de iniciação científica no LabCidade e Lara Giacomini é graduanda da FAUUSP e pesquisadora de iniciação científica no LabCidade.