Por Felipe Suzuki Ursini, Paula Freire Santoro e Débora Ungaretti  (*) 

Em novembro de 2024, o LabCidade FAU-USP e a Sehab da Prefeitura Municipal de São Paulo, com apoio da FAPESP, Observatório Global de Aluguéis Temporários e Fundação Rosa Luxemburgo, organizaram o “Seminário Internacional Políticas Habitacionais de Aluguel Social”, que contou com apresentação oral de 41 trabalhos selecionados e palestras com convidados, traçando um panorama crítico destas políticas e do papel preponderante e crescente do aluguel como fronteira para acumulação do capital imobiliário financeiro.

Sintetizamos nos próximos posts os resultados e temas importantes apresentados no Seminário, que está registrado e disponível online em uma playlist no canal do LabCidade no Youtube ou nos Anais de Resumos Expandidos.

Já foram publicados um primeiro texto, apresentando os Anais, e um segundo, com um panorama dos modelos em curso. Este terceiro texto trata da financeirização do aluguel, apresentando os casos que trataram de fundos imobiliários e títulos de base imobiliária, bem como suas articulações com o modelo das parcerias público-privadas e com incentivos e subsídios estatais.

“Por que, de repente, todos os países – especialmente aqui, América Latina, periferia do capitalismo – começam a falar em políticas públicas de locação social? (…) Tem alguma coisa aí”. Assim a professora Raquel Rolnik abriu sua palestra “Políticas habitacionais no contexto do aluguel como frente de expansão imobiliária financeirizada” (veja a palestra na íntegra em português ou inglês).

À pergunta seguiu-se uma exposição do processo global de financeirização da moradia na esteira da hegemonia neoliberal, construída a partir dos anos 1970 e relacionada a mudanças estruturais no mundo do trabalho e na concepção do papel do Estado. A garantia de direitos – nos contextos em que de fato existiu, mas também no imaginário político – deixa de ser uma missão coletiva e estatal com a conversão de serviços tradicionalmente públicos e de caráter universal em mercadorias. Abrem-se novos mercados para o setor privado, cabendo ao Estado fomentar a capacidade de compra e endividamento da população que deve conquistar seu bem-estar individualmente. 

Estes novos mercados representam possibilidades de aplicação dos excedentes de capital globais, cada vez mais concentrados no mercado financeiro sob a tutela de gigantescas organizações de gestão de ativos. Sempre à procura das oportunidades mais lucrativas para aterrissar, esses excedentes avistam no espaço construído – e na moradia, especialmente a partir da crise de 2008 – uma pista de pouso. A hipótese apontada por Raquel Rolnik é de que a moradia de aluguel tem características específicas que a situam em uma nova frente de expansão financeira. 

De fato, um amplo repertório de formas locais de aterrissagem dos excedentes financeiros geridos globalmente alimentou o debate sobre a financeirização do aluguel, de forma mais direta na Mesa 5 – Financeirização do aluguel (veja as apresentações e debate na íntegra em português ou inglês), mas também transversalmente ao longo do seminário.

Aplicado ao setor habitacional, o marco da financeirização corresponde à generalização da conversão da moradia em ativo, que serve como lastro ou garantia de produtos financeiros geradores de rendas futuras. Antes de uma construção com características físicas próprias e um lar para pessoas de carne e osso, a moradia passa a ser mera escritura que carrega consigo o potencial de auferir renda e um valor de troca que garante capacidade de endividamento equivalente. Esta tendência global envolve a atuação do Estado na regulação e fomento de mercados e promoção de políticas públicas que dispõem o espaço urbano e os direitos a ele vinculados como plataformas de valorização de capitais. 

As experiências apresentadas ilustram e problematizam esse quadro geral em relação ao crescimento da relevância do aluguel residencial – de curta duração inclusive. Trata-se de um processo em andamento, mas ficou demonstrado o interesse de atores privados – muitos dos quais intermediários financeiros – na captura de fundos públicos mediante políticas de locação, assim como os limites e desafios que interpelam esse projeto nos âmbitos locais.

No Brasil, o interesse no desenvolvimento do mercado de capitais busca constituir uma alternativa de funding da produção habitacional para atrair investidores e acessar públicos que não estão contemplados nas linhas tradicionais do Sistema Financeiro de Habitação (SFH), alimentado pelos fundos de poupança FGTS e SBPE há sessenta anos.

O fomento aos títulos financeiros de base imobiliária e/ou de impacto social é uma aposta para tal diversificação baseada na alavancagem de dívidas. Os recebíveis correspondentes aos aluguéis futuros podem ser adiantados ao presente quando vendidos a investidores que assumem as dívidas em troca de juros.

Títulos financeiros de base imobiliária

A discussão sobre títulos financeiros de base imobiliária esteve concentrada em apresentações que versaram sobre Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRIs), debêntures incentivadas, Fundos de Investimento Imobiliário (FIIs) e FIBRAs (versão mexicana dos REITs norte-americanos) em suas recentes composições com o aluguel (veja a Mesa 5 na íntegra em português ou inglês).

O paradigma das finanças de impacto (finanças sustentáveis, práticas ESG, Social Impact Bonds, etc), ainda incipiente, foi enunciado na forma de pergunta: é possível cumprir as tarefas sociais e ambientais da humanidade através do rentismo financeiro, leia-se, condicionando-as à taxas de retorno (ainda que mais baixas) sobre investimentos?

Conforme a apresentação de Mariana Cristina Adão (Mesa 5, 5.1), existem duas narrativas em disputa a esse respeito: aquela que enxerga nesses negócios uma possibilidade de “mitigar efeitos nocivos dos investimentos tradicionais” contra outra que vê apenas uma “nova lógica de regulação da pobreza”. Colocando-as à prova, foram expostos quatro exemplos de estruturas de financiamento da produção e gestão de habitação de aluguel mediante finanças de impacto, o que poderíamos chamar mais especificamente de negócios de impacto habitacional (ver artigo de Santoro e Chiavone, 2020). 

A autora iniciou apresentando os casos inglês e italiano, que consistem em políticas estruturadas diretamente pelo Estado, mobilizando parques de locação social preexistentes e contando com alto grau de especialização dos atores responsáveis por cada fase da cadeia “produtiva” das finanças de impacto. Em ambos se verificou conflito entre os objetivos da política habitacional e a diretriz de redução de riscos imposta pelos investidores. 

Em seguida, apresentou duas iniciativas privadas de pequeno porte em São Paulo: Sistema Organizado de Moradia Acessível (SOMA) e Programa +Lapena Habitar. O primeiro consiste em um único empreendimento residencial de locação “acessível”, localizado em bairro central e destinado a locatários com renda familiar de três a cinco salários mínimos. O projeto foi incorporado pela Magik JC em parceria com a companhia securitizadora Grupo Gaia e a consultoria especializada em negócios de impacto Din4mo.

Envolveu a criação de uma ONG que angariou recursos para a construção através da emissão de CRIs e também é a entidade responsável pela gestão condominial e dos aluguéis do empreendimento. Cinco empresas, sendo quatro do ramo da construção civil, investiram na compra dos certificados apesar da rentabilidade relativamente baixa oferecida.

O segundo caso, ainda em estruturação, pretende produzir empreendimentos para aluguel social no bairro Jardim Lapena, na Zona Leste paulistana, por meio da parceria entre a ONG filantrópica Fundação Tide Setúbal e a Associação BlendLab – consultoria em blended finance voltada especificamente ao setor habitacional.

Os dois casos propõem modelos de transferência de recursos da filantropia tradicional para os investimentos de impacto social (e habitacional) – sem fins lucrativos, com fins rentistas -, envolvendo novos agentes especializados e perspectivas de maior participação do Estado nessa agenda. 

A apresentação de Santiago Echarri Cotler (Mesa 5, 5.4) trouxe ao debate a experiência mexicana das FIBRAs (Fideicomisos de Infraestrutura y Bienes Raíces), similares aos FIIs (Fundos de Investimento Imobiliário) brasileiros, porém constituídos como empresas de capital aberto – como os REITs (Real Estate Investment Trusts) dos Estados Unidos. Trata-se, em resumo, de portfólios imobiliários disponíveis para investimento em troca de rendimentos financeiros.

No caso mexicano, as 16 FIBRAs que operam atualmente correspondem a 10% das empresas listadas na bolsa e recebem investimentos externos, institucionais e individuais em medidas similares. Embora a atividade imobiliária desses fundos seja residual no setor residencial, foram anunciados recentemente dois empreendimentos de moradia de aluguel na Cidade do México financiados por FIBRAs. Concomitantemente, o poder público municipal desenvolveu sua primeira iniciativa de locação social em um projeto piloto.

A comparação entre essas iniciativas de moradia de aluguel fornece uma base analítica rica para pensarmos o papel do Estado na regulação e na provisão habitacional, e o que a princípio são dois modelos separados suscita o avanço das dinâmicas de financeirização da moradia justamente nas perspectivas de articulação entre público e privado.

As debêntures incentivadas são títulos de dívida corporativa, isentos de imposto de renda, voltados à captação de recursos para obras de infraestrutura estratégicas do ponto de vista público – modelo alinhado com o paradigma das finanças de impacto. A apresentação de Marcella Gomes Puppio (Mesa 5, 5.2) tratou da recente inclusão de projetos habitacionais como uma categoria de infraestrutura elegível para este instrumento, desde que implementados via PPP (decreto nº 11.964/2024).

A regulamentação nos pareceu compor diretamente com os projetos de PPP de locação social do Recife (Mesa 2, 2.3 e 2.4) e Campo Grande (Mesa 2, 2.2), ainda em fase de formulação, que se abrem para modelagens financeiras alavancadas no mercado de capitais. Tais soluções mediadas pelas finanças demandam que subsídios e incentivos públicos sejam repassados em última instância a emissores de dívidas e investidores, em detrimento de prestadores de serviço e beneficiários. 

O aluguel temporário e suas plataformas digitais

O aluguel temporário (tema que abordaremos também em um próximo post) é atualmente o mercado que melhor ilustra os processos de aterrissagem de excedentes globais em negócios imobiliários financeirizados.

No seminário, o pré-lançamento do Observatório Global de Aluguéis Temporários (veja o evento aqui) e as apresentações sobre aluguel temporário em Buenos Aires (Mesa 5, 5.3), Cidade do México (Mesa 6, 6.3), São Paulo e Rio de Janeiro (Mesa 6, 6.4) demonstraram que sua consolidação é um fenômeno global cujos desenvolvimentos, no entanto, estão sujeitos à estruturas econômicas, mercados, bairros, imóveis e legislação preexistentes e específicas de cada país ou cidade. 

Desde o surgimento de suas plataformas digitais, por volta de 2010, o aluguel temporário teve crescimento constante, acompanhado das tendências de aumento no número de multiproprietários (hosts com mais de um imóvel ofertado), ampliação da quantidade de imóveis nas mãos desses agentes, e profissionalização da gestão do aluguel, incluindo a criação de plataformas alternativas ao Airbnb e Booking. Fundos como as FIBRAs mexicanas investem em empreendimentos do tipo built to rent, como os residenciais multifamily, em que as unidades não são vendidas, mas permanecem em propriedade de um único agente.

Trata-se de tendências que vinculam atores corporativos do mercado financeiro e da incorporação imobiliária em produtos padronizados arquitetonicamente e que, em sua publicidade, buscam promover o aluguel como forma de acesso à moradia ou opção vantajosa de investimento.

Ao aterrissar em mercados desregulados, como é a regra nos países latinoamericanos, o aluguel temporário é duplamente rentável: face aos aumentos no valor imobiliário nos bairros em que se instala, e pela possibilidade de anunciá-lo em plataformas digitais como serviços de curta duração ainda menos regulados do que o aluguel convencional.

Os debates sugerem que é premente legislar sobre o tema conforme seu desenvolvimento desenfreado expande a influência sobre a produção da cidade, favorecendo interesses rentistas articulados aos capitais financeiros globais em detrimento das necessidades habitacionais locais.

Em síntese, o rol de experiências reunido nas apresentações demonstra que o desenvolvimento de políticas de locação social é hoje apto tanto ao aprofundamento da mercantilização da habitação – em acordo com os ditames neoliberais – quanto aos esforços de garantia incondicional de direitos universais – identificados historicamente com o marco do bem-estar social, que está na origem do instrumento.

A hegemonia das finanças se apoia na primeira perspectiva, que aposta na ampliação da capacidade de endividamento das populações como forma de acesso individual a direitos básicos. Neste quadro, a gestão dos riscos inerentes às dívidas passa a estruturar a atuação do Estado e os desenhos de políticas públicas, que terminam por gerir a insegurança habitacional dos mais vulneráveis.

(*) Felipe Suzuki Ursini é mestrando pela FAU-USP e pesquisador do LabCidade; Paula Freire Santoro é professora doutora da FAU-USP, coordenadora do LabCidade e bolsista produtividade CNPq 2; Débora Ungaretti é doutora pela FAUUSP e pesquisadora no LabCidade.