Por Pedro Mendonça *
Na segunda-feira, 10 de fevereiro, a cidade amanheceu debaixo d’água. Além dos danos irreparáveis às casas de várias famílias, muitos paulistanos não conseguiram chegar aos seus destinos diários, já que boa parte da rede de transporte público não pôde circular. A Zona Norte da cidade foi a região com mobilidade mais afetada: apenas uma das doze travessias do rio Tietê por transporte público não foi afetada pelos alagamentos. Mas apesar do aparente ineditismo desse cenário caótico, o fenômeno é lugar-comum dos verões em São Paulo. Confrontada com esse problema há décadas, a Prefeitura insiste em estratégias de gestão urbana focadas no desenvolvimento imobiliário e nas soluções de transporte rodoviarista.
São Paulo já deu melhor uso para suas águas. No passado, os rios da cidade deram subsistência para lavadeiras e suas famílias, foram o meio de transporte usado por agricultores para abastecer a cidade com alimentos e abrigaram uma população incapaz de arcar com o preço da terra nas áreas mais altas. Essas formas de viver foram todas atropeladas pela implantação do modelo de urbanização rodoviarista, escolhido como solução de mobilidade para a cidade no começo do século XX. A partir dos anos 1910, os rios da cidade foram retificados e rodovias urbanas foram implantadas em suas margens, isolando-os da vida cotidiana. São justamente essas vias que amanheceram alagadas nesta segunda-feira.
Quando chove em São Paulo, a solução rodoviarista se combina com estratégias de zeladoria urbana e (ausência de) política habitacional na produção do caos. A cidade é bastante dependente da limpeza da rede de drenagem para evitar alagamentos, pois a alta impermeabilização faz as águas pluviais escoarem rapidamente pelas galerias subterrâneas. Apesar de crítica para reduzir o impacto dos temporais, a limpeza desses dutos é paliativa – jamais reverteremos décadas de impermeabilização apenas tirando lixo dos bueiros. Mesmo assim, seguindo um raciocínio inverso, a Prefeitura cortou bruscamente os gastos com obras de combate a enchentes e alagamentos desde 2016, e ano passado decidiu endividar-se para investir em asfaltamento.
Por outro lado, áreas alagáveis remanescentes ao longo de rios passam a ser uma alternativa habitacional para famílias de baixa renda. Elas são justamente as primeiras a sentir o impacto das chuvas fortes. Os ônibus, parte da solução rodoviarista, viabilizaram historicamente a expansão da cidade para as periferias, onde hoje estão concentradas as ocupações precárias em encostas de morros. Ações do poder público nessas áreas alegam risco geotécnico para promover remoções, mas não garantem uma alternativa habitacional segura e definitiva em outro lugar. Em épocas de chuva, as famílias que moram na várzea lidam sozinhas com a água e as famílias das encostas lidam sozinhas com a lama. E quando os alagamentos interrompem a circulação de transporte público, os trabalhadores das áreas alagáveis e regiões periféricas – quase sempre dependentes dos ônibus – são os mais impactados.
As consequências ambientais do nosso modelo de urbanização não são igualmente distribuídas na cidade. Podemos observar algumas delas em detalhe quando olhamos para a Zona Norte, a mais afetada pelos alagamentos. Essa região é separada dos polos de emprego de São Paulo pelo rio Tietê, e por isso seus trabalhadores dependem das pontes e da boa condição de circulação nas várzeas. As chuvas da segunda-feira 10 de fevereiro puseram a rede de transporte por ônibus à prova, e a Zona Norte acabou se tornando uma ilha: a única travessia possível era a Via Anhanguera. Todas as outras alternativas estavam intransponíveis, conforme mostra monitoramento realizado pelo LabCidade. Na borda norte da região, os deslizamentos destruíram vias e chegaram a engolir um ônibus na Avenida Cel. Sezefredo Fagundes. Já no lado sul, bairros na várzea do Tietê, como Pari, Bom Retiro, Barra Funda, Limão e Vila Guilherme, foram inundados e perderam completamente os serviços de transporte público municipal.
Os mapas ajudam a ilustrar a armadilha de um sistema de transporte público apoiado no rodoviarismo. A pavimentação piora as condições de escoamento das águas de chuva – levando a alagamentos, que causam danos e diminuem a durabilidade do asfalto. Para garantir as condições de circulação dos ônibus, é necessário pavimentar continuamente, e pavimentações executadas em períodos de chuva tendem a ser ainda mais suscetíveis a problemas. A impermeabilização intensa das encostas e cumeeiras da cidade, onde os ônibus ainda conseguiam circular na segunda-feira, leva ao rápido alagamento das várzeas, impedindo a travessia dos rios. Na perspectiva dos moradores da Zona Norte, isso significa isolamento total do resto da cidade. Para piorar, como o acesso à rede de trilhos nas periferias depende dos ônibus, para muita gente foi indiferente se os trens do Metrô estavam funcionando ou não. Com isso, torna-se quase impossível o acesso ao local de trabalho e ao ensino, mas também a serviços públicos especializados e, em longo prazo, ao abastecimento.
A Prefeitura ainda não apresentou nenhuma resposta para o problema (para além da suspensão do rodízio), mas tem desenvolvido projetos que podem agravar a situação. O PIU Setor Central e o PIU Arco Tietê, por exemplo, propõem a abertura de uma nova frente de expansão imobiliária na várzea do rio Tietê, com a abertura das avenidas Apoio Urbano Sul e Apoio Urbano Norte. No Apoio Sul, os novos empreendimentos poderão construir quatro vezes a área do terreno e terão desconto de metade do valor da outorga onerosa, devendo apenas atender uma quota ambiental. Não existem mecanismos para remediar o impacto cumulativo dos empreendimentos, nem qualquer previsão de infraestrutura verde em espaços públicos. Sem as contrapartidas ambientais, o que impedirá que essas vias tenham o mesmo destino da Marginal Tietê em um dia de chuva? A minuta do projeto de lei do PIU Setor Central vai além, e impede o uso de recursos próprios para investir em transportes sobre trilhos, ratificando a primazia do asfalto no transporte público municipal.
Além disso, o modelo de transformação dos PIUs tem focado em novos empreendimentos, e por isso não são capazes de garantir a permanência da população de renda mais baixa que já mora no centro. O PIU Setor Central prevê projetos estratégicos para adensamento da várzea, com doação de grandes áreas públicas para desenvolvimento imobiliário, mas não dá diretrizes de desenho suficientes para esses projetos nem estabelece qualquer percentual mínimo para atendimento habitacional. Remoções causadas pelo aumento do preço da terra decorrente das melhorias ou pelas intervenções previstas no projeto podem pressionar a ocupação de áreas de várzea e encosta mais afastadas – aumentando o risco para as famílias, o impacto ambiental da urbanização e a demanda pelo serviço de ônibus. Há um grande esforço para modelagem de mercado, com incentivos à transformação e expectativas de fluxo de caixa da intervenção, mas nenhuma compreensão do impacto ambiental, desdobrado em condições de habitação e acessibilidade.
Essa visão focada na transformação intra-lote já vige em outros lugares, como na exigência de reservatórios apenas para empreendimentos novos pelo Plano Diretor, ou nos projetos de construção de piscinões. Tais alternativas terminam num contrassenso: para reverter o impacto do desenvolvimento, dependem de mais desenvolvimento, com grande impacto no espaço urbano. Além disso, ignoram o impacto do rodoviarismo no desenho dos espaços públicos e da rede de transporte coletivo. No período de chuvas, esse modelo de cidade insustentável ricocheteia em nossas formas de viver contemporâneas. A solução passa, necessariamente, por repensar a dependência entre transformação urbana e desenvolvimento imobiliário, entre transporte público e asfalto.
- Baixe aqui o shape dos dados utilizados na pesquisa e nos mapas do post #dadosabertos
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