Por Aluízio Marino, Amanda Amparo, Ariel Machado, Daniel Mello, Giordano Magri, Luca Meola e Raquel Rolnik*

A grande ação policial na Praça Princesa Isabel, realizada em maio de 2022, multiplicou e espalhou pelo centro da cidade de São Paulo as concentrações de pessoas em situação de rua e com uso abusivo de drogas. Levantamento inédito realizado pelo LabCidade em parceria com pesquisadores, trabalhadores e ativistas do território identificou pelo menos 16 locais para onde migraram os chamados fluxos.

O levantamento foi realizado a partir de acompanhamento direto no território com o objetivo de identificar os locais onde há presença do fluxo e estimar a quantidade de pessoas. A partir dessas informações foi elaborado um mapa que ilustra a anti-política em curso. Os resultados mostram que a maior parte das pessoas que compõem a aglomeração conhecida como Cracolândia não deixaram as ruas da parte central da cidade, apenas passaram a ocupar ruas e calçadas em concentrações menores e itinerantes, em um raio que não ultrapassa 750 metros a partir da Praça Princesa Isabel. Essas pequenas aglomerações de pessoas reproduzem as dinâmicas da Cracolândia em diversas esquinas da região da Luz, Santa Cecília, República e Campos Elíseos.

O mapa ilustra os diferentes lugares onde há concentração dos usuários, o que não significa que esses lugares estão permanentemente  ocupados, já que a ação das polícias Militar e Civil e da Guarda Civil Metropolitana é orientada para a dispersão constante dos fluxos. Esse cenário dificulta, e muito, a realização de uma contagem exata do número de pessoas. A estimativa deste levantamento é de um total de 1.000 a 2.000 pessoas transitem por esses locais. Ou seja, a cracolândia não diminuiu, como afirmam a Prefeitura e o Governo de São Paulo, apenas está mais dispersa, ocupando vários em vez de um local na cidade.

É importante assinalar que este mapa não dá conta da totalidade de mini cracolândias existentes, apenas ilustra a dispersão no entorno da Praça Princesa Isabel, já que outras partes da cidade também têm pontos conhecidos pela concentração de pessoas em situação de rua e com consumo abusivo de drogas. Apesar de ter sido apresentada como uma ação contra o tráfico de drogas, as ações recentes repetem os resultados desastrosos da chamada operação “sufoco” ou “dor e sofrimento”, realizadas em 2012. Assim como aconteceu na gestão do então prefeito Gilberto Kassab, a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana forçam o deslocamento constante das aglomerações de pessoas, o que ficou conhecido, há dez anos atrás, como “Procissões do crack”.

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Essa tática foi atualizada sob a denominação de “Operação Caronte” que, dessa vez, é liderada pela Polícia Civil. A Prefeitura e o Governo do Estado de São Paulo alegam que as ações atuais são baseadas em “investigação e inteligência”, com a identificação de supostos traficantes que vendem drogas nas ruas. Porém, para além do cumprimento semanal de mandados de prisão, a Polícia Militar a Guarda Civil Metropolitana apenas repetem o roteiro de intimidação e violência, com uso de cassetetes, spray de pimenta e bombas de gás, para evitar e dispersar as concentrações de pessoas em situação de rua, mantendo-as  circulando por diversos pontos do centro da cidade.

A dificuldade de estimar a quantidade de pessoas que vivem na Cracolândia espalhada pelo centro de São Paulo é apenas um dos reflexos das desastrosas ações policiais realizadas neste ano. Se não é possível sequer saber o tamanho dessa população, as ofertas de serviços de saúde e assistência social ficam, sem dúvida, ainda mais comprometidas. Além de que a violência causa uma forte desconfiança das pessoas em situação vulnerável em relação aos órgãos públicos, comprometendo as abordagens e formação de vínculos pelas equipes de assistência.

A dispersão da Cracolândia não atende, então, nem aos interesses da população em situação de rua, nem melhora as condições de vida de quem trabalha ou vive em casas e apartamentos no centro da cidade. No entanto, tem um sentido bastante claro de abertura de frentes de expansão imobiliária na região. Em 2012, junto com a Operação “Dor e Sofrimento”, a prefeitura da gestão Gilberto Kassab demoliu dezenas de imóveis na região da Luz, Santa Ifigênia e Campos Elíseos. Movimento que foi retomado em 2017 pelo então prefeito João Doria, quando um casarão chegou a vir abaixo com pessoas dentro. Esses imóveis que serviam de moradia, muitas vezes precária, para a população pobre no centro da cidade foram, em parte substituídos por grandes torres de apartamentos viabilizados a partir de uma Parceria Público-Privada que não atendeu os moradores expulsos do local. As desapropriações de comerciantes a proprietários que viviam há muitos anos no local foram facilitadas a partir do discurso da “revitalização”. Hoje estamos observando o mesmo movimento: no raio de atuação da Operação Caronte, bares e comércios são fechados e lacrados com a justificativa da irregularidade, a mesma que marca a maior parte dos bares e comércios da cidade, mas aqui estão no perímetro “marcado para morrer”’.

Parte dos locais onde transitam as novas concentrações da Cracolândia são pontos com características parecidas: pessoas que vivem em  moradias precárias e coletivas de aluguel, como as pensões, famílias de renda média baixa; imóveis pouco verticalizados; presença de comércio popular.

A chegada dos fragmentos da Cracolândia a esses locais tende a sufocar rapidamente os pequenos comerciantes e expulsar os moradores. Ficam para trás, os imóveis vazios e as famílias em habitações mais precárias ainda. Os grandes empreendedores imobiliários ganham a oportunidade de adquirir áreas com preços artificialmente baixos e o Poder Público consegue aprovação popular para intervenções urbanas que dificilmente seriam legitimadas em outras situações.

A dispersão dos grupos de pessoas em situação de rua e com consumo abusivo de droga cria e acirra diversos conflitos na região central e nas discussões públicas sobre os temas envolvidos. Moradores e comerciantes que, após as ações policiais deste ano, passaram a conviver com os fragmentos da Cracolândia são colocados em situação limite, demandando medidas imediatas contra os problemas causados pelos deslocamentos dos fluxos. Isso, muitas vezes, leva essa população a ter uma visão hostil  em relação aos trabalhadores de serviços de atendimento na região.

Esse clima de animosidade tira o foco e dificulta debates propositivos, de ações que possam melhorar a vida de todas as populações que vivem e trabalham na região central de São Paulo. Fenômenos semelhantes a Cracolândia existem em diversas grandes cidades do mundo e são resultado de diversas questões – como falta de moradia; incapacidade do mercado de trabalho de absorver toda a mão de obra disponível; insuficiência de políticas de atenção à saúde mental.

Por isso, as políticas públicas com melhores resultados no enfrentamento desse tipo de situação em outras partes do mundo são justamente as ações que buscam ao menos amenizar os problemas relacionados ao consumo abusivo de drogas e a falta de moradia. Os chamados programas de “moradia primeiro” oferecem habitação digna às pessoas que dormem em calçadas, melhorando a qualidade de vida de todas as populações envolvidas. Locais de uso seguro de droga, aliados a medidas consistentes de atenção à saúde, também tendem a reduzir os impactos do grande número de pessoas com consumo problemático nas ruas das cidades. Propostas semelhantes foram elaboradas no âmbito do Fórum Aberto Mundaréu da Luz, que elaborou com a participação ativa de moradores e trabalhadores do território o Plano Campos Elíseos Vivo.

Para implementação de essas e outras medidas, no entanto, é necessário que o debate público esteja direcionado a entender as dinâmicas e complexidades que envolvem a Cracolândia e, sobretudo, que fique claro que as medidas tomadas hoje, longe de acabar com os problemas, os multiplicam. Se era uma, hoje são no mínimo 16 Cracolândias na área central de São Paulo.

 

*Aluízio Marino – Pesquisador do Labcidade; Amanda Amparo – Antropóloga PPGAS-USP; Ariel Machado Godinho – Mestrando no PPGH-USP; Daniel Mello – Militante d’A Craco Resiste; Giordano Magri – Pesquisador da FGV; Luca Meola – fotojornalista; Raquel Rolnik – Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.