Este texto faz parte de uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade e parceiros no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram levemente alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.
Isadora de Andrade Guerreiro *
São Paulo tem há 20 anos um Programa de Locação Social com cerca de 900 unidades habitacionais em funcionamento em parque público e aluguel segundo faixa de renda familiar – numa perspectiva do direito à moradia deslocado do direito à propriedade. Embora se diga que parte das dificuldades de avanço desse modelo tenha a ver com a ideologia da casa própria no Brasil, argumentamos aqui que o problema não estaria tanto na recusa da locação em si, mas na forma como grandes capitais privados – concentrados e financeirizados – poderiam captar os ativos e fluxos de recursos públicos por meio da locação social, algo que ainda dá os primeiros passos no país.
A saída deste impasse parece estar sendo desenhada por meio da gestão da locação, transformando a moradia em serviço, podendo ser viabilizada em parque privado que captura ativos e recursos públicos de maneiras diversas, securitizando recebíveis e podendo se retirar do processo quando já tiver alcançado retorno. O mecanismo do aluguel parece ser propício a isso, pois separa uso de propriedade, colocando o tempo como definidor de rentabilidade e contrapartidas. Do ponto de vista do direito à moradia, isso significa uma flexibilização que funcionaliza a insegurança habitacional (GUERREIRO, 2020), com um permanente atendimento temporário, institucionalizando – e tornando produtiva para o capital – a realidade cotidiana precária de transitoriedade permanente a qual estão submetidas as classes populares (ROLNIK, 2019).
Em São Paulo, essa lógica se desenvolve em paralelo ao Programa Locação Social desde 2004 através de programas de atendimento habitacional temporário com pagamento mensal de apoio ao aluguel, casos do Bolsa Aluguel (2004-2007), Parceria Social (2007-2010) e Ações de Habitação, que instituiu o Auxílio Aluguel (2010-atual). Desde 2010, o atual Auxílio Aluguel atendeu mais de 45mil famílias, a maior parte delas vítimas de remoções por obras e urbanizações de favelas (SEHAB, 2016) e, mais recentemente (2019), com uma importante parcela de remoções para liberação de terrenos para a Parceria Público-Privada (PPP) Casa da Família. Chama a atenção a enorme escala de atendimento e volume de recursos, que têm se direcionado via de regra para o mercado informal de locação em áreas precárias, dada a inexistência de critérios mínimos de habitabilidade e regularidade no contrato entre o beneficiário e o locador. Este não tem qualquer relação com o poder público municipal que, por sua vez, também não tem controle da localização dos aluguéis que subsidia, nem das consequências na transformação das dinâmicas imobiliárias informais geradas em comunidades com grande concentração de atendimentos.
Se concentrado e controlado, no entanto, esse fluxo de recursos gerados pela gestão da insegurança habitacional pode abrir uma nova frente de negócios imobiliários financeirizados que capturam fundos públicos. Estes controle e direcionamento centralizados de rendas têm sido realizados mundialmente, de forma acelerada desde a crise hipotecária mundial, por meio da forma de propriedade multifamily, na qual um conjunto de unidades imobiliárias no mesmo lote não forma um condomínio, mas permanece sob a titularidade de um único proprietário. Este, por sua vez, é uma figura jurídica, institucional ou corporativa, que gerencia ativos de forma transnacional e articulada com as finanças – os chamados Corporate Landlords (FIELDS, 2018). As plataformas digitais se transformam, neste sistema, no meio prioritário de gerenciamento e concentração de fluxo de rendas dispersas (SLEE, 2017; FIELDS, 2019), atuando sob a falta, ou contornamento, de arcabouço jurídico de proteção de direitos (trabalhistas ou urbanos) (TAVOLARI e NISIDA, 2020).
Há três frentes em curso para efetivar a captura de recursos públicos por meio de atendimento temporário na política habitacional, que precisam ser analisadas na articulação entre a esfera municipal (regulamentação urbana e gestão de demanda) e a federal (recursos e patrimônio):
- Transformação do Auxílio Aluguel em Voucher intermediado por gestores de locação, que podem ter parque próprio ou administrar, por plataformas digitais, aluguéis dispersos. Os recebíveis poderiam ser securitizados pelos proprietários corporativos. Essa alternativa está sendo estudada pelo governo federal e pelo municipal;
- Captação de incentivos fiscais e de flexibilização da regulação urbanística para promover empreendimentos multifamily (não necessariamente de interesse social) em áreas bem localizadas que, utilizando-se do recurso do atendimento temporário, podem consolidar de forma permanente outros usos e demandas, inclusive se utilizando de Consórcio Imobiliário com o poder público. O novo programa municipal aprovado Requalifica Centro precisa ser analisado deste ponto de vista;
- Como fusão e aprofundamento das frentes anteriores, implementação de PPPs habitacionais baseadas em captação privada de valorização imobiliária em terras públicas, com empreendimentos de proprietários corporativos destinados à locação subsidiada. O subsídio ao aluguel pode ser securitizado e os empreendedores ganham incentivos fiscais, tributários e urbanísticos para construção, permanecendo vinculados ao atendimento da política pública por período determinado em contrato – quando terminado, os proprietários corporativos podem dispor integralmente do imóvel de forma privada. O Programa Aproxima, parte do programa federal Casa Verde e Amarela (que já tem legislação aprovada neste sentido), vai consolidar este modelo que, dentre outros problemas, institucionaliza ingerência sobre regulação municipal, flexibilizada caso a caso de acordo com os contratos específicos. O PL municipal 258/2016 (aprovado, vetado e reconduzido à Câmara dos Vereadores) também busca implementar este modelo em São Paulo.
Assim, vemos que a geração institucional – por remoções e auxílio ao aluguel – de uma dinâmica de insegurança habitacional tem incomodado apenas na medida em que seu fluxo de recursos não está sendo capturado pelo capital imobiliário financeirizado. A moradia como direito é deixada de lado no momento em que, transformada em serviço, aciona mecanismos de concentração e financeirização de fluxos de renda – particularmente quando apoiados em políticas públicas e gestão de regulação urbanística.
*Professora e pós-doutoranda na FAU-USP, pesquisadora do LabCidade
Referências Bibliográficas:
FIELDS, D. (2018). Constructing a New Asset Class: Property-led Financial Accumulation after the Crisis. Economic Geography, v.94, n.2, pp.118–140.
FIELDS D. (2019). Automated landlord: Digital technologies and post-crisis financial accumulation. Environment and Planning A: Economy and Space.
GUERREIRO, I.A. (2020). O aluguel como gestão da insegurança habitacional: possibilidades de securitização do direito à moradia. Cadernos Metrópole, v.22, n.49, pp.729-756.
ROLNIK, R. (2019). Guerra dos lugares: a colonização da terra e da moradia na era das finanças. São Paulo, Boitempo.
SEHAB (2016). Plano Municipal de Habitação: Caderno para discussão pública. São Paulo, PMSP.
SLEE, T. (2017). Uberização: a nova onda do trabalho precário. São Paulo, Editora Elefante.
TAVOLARI, B.; NISIDA, V. (2020). Entre o hotel e a locação: análise jurídica e territorial das decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o Airbnb. Internet & Sociedade, v.1, n.2, pp. 5-30.
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