Mapa das precariedades levantadas pela pesquisa, em todos os perímetros de campo, subdividas em tipologias. Em vermelho estão marcadas as áreas encortiçadas. Elaborado por Peabiru TCA e LabCidade, 2016.
Por Paula Freire Santoro*, Caio Santo Amore**, Maria Rita de Sá Brasil Horigoshi***, Daniela Perre Rodrigues***
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A vasta crítica sobre as Operações Urbanas paulistanas – que afirma que valorizam áreas já muito valorizadas e de interesse do mercado, que estão baseadas em obras viárias, que não promovem inclusão social, entre tantas outras – fez com que as novas propostas de intervenção tenham se apropriado do discurso da inclusão socioterritorial e de propostas de regulações urbanas para a produção de habitação de interesse social (HIS) nos perímetros da operação. Estas reconhecem a obrigatoriedade de produzir HIS, preveem atendimentos habitacionais, reservam recursos para isso e, eventualmente, até reservam terras demarcadas como Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis). Mas o que se vê na prática são propostas de inclusão social ainda muito tímidas, especialmente quando se observam as vantagens dadas ao mercado imobiliário, motor da transformação urbana incentivada pelas Operações Urbanas, e são propostas que dialogam muito pouco com a realidade urbana e habitacional presente em seus territórios.
O debate sobre a proposta de Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí (Projeto de Lei 723/15) é um exemplo disso. Pouco se sabia sobre a necessidade de se construir habitação de interesse social e menos ainda sobre a diversidade e complexidade das situações habitacionais precárias presentes naquele território durante a elaboração da lei da operação.
Esta invisibilidade das precariedades levou o LabCidade FAUUSP e a Peabiru a realizar, em 2016, uma pesquisa exploratória para identificar estas situações, intitulada “Levantamento das situações de moradia precária na Operação Urbana Consorciada Bairros do Tamanduateí”. Entre maio e setembro, foram feitas pesquisas de campo na região, conversas e oficinas com especialistas e lideranças de movimentos de moradia que realizam e mantêm ocupações nas áreas centrais de São Paulo, trabalhando historicamente com moradores de cortiços. A precariedade nas regiões consolidadas, a variedade de tipologias encontradas, que formam áreas encortiçadas, e a soma de vulnerabilidades das famílias mostraram que os problemas não são apenas habitacionais, mas urbanos.
Algumas das tipologias encontradas durante o trabalho de campo naquele território, na orla ferroviária e fluvial do Rio Tamanduateí, no trecho que abrange o centro e o começo da Zona Leste, foram favelas, ocupações organizadas por movimentos e não organizadas, coabitação no lote, cortiços, pensões ou hospedarias, serviços municipais, centros de acolhida e repúblicas. O cortiço como tipologia habitacional genérica – que a literatura sobre habitação consagrava juntamente com as favelas ou loteamentos populares – já não explica por si a precariedade em áreas centrais ou consolidadas. Mais que isso, a definição de cortiço utilizada institucionalmente em São Paulo, presente na Lei Moura (Lei no 10.928/1991), que regulamenta estas situações, não dá conta de descrever a diversidade das tipologias de moradias precárias. Entre os entrevistados, por exemplo, o termo mais utilizado é “pensão”. (Veja todas as tipologias no final do texto)
A pesquisa realizada mostra que é grande a “invisibilidade” das precariedades habitacionais. A cidade consolidada – com vias estruturadas, mistura de usos, edificações antigas – acaba escondendo condições de moradia bastante insalubres, às quais se somam outras vulnerabilidades sociais. Imóveis de moradia precária estão entremeados a diferentes tipos de edificações de uso intenso e aparente qualidade construtiva externa.
O levantamento mostrou, ainda, precariedades que não estavam sequer mapeadas pelo sistema Habisp da Prefeitura, sinalizando para o frequente subdimensionamento do problema habitacional. Mesmo nas regiões que já contavam com mapeamento mais detalhado, foram encontradas situações de cortiços que “nascem” e “morrem”, de imóveis que passam a ter esse uso e outros que são “revitalizados”, mudam de uso ou são demolidos – confirmando pesquisas sobre o tema que já mostravam essa situação. Os cortiços, contudo, se mantêm na mesma região, delimitando “áreas encortiçadas” (ver Mapa acima) que, por mais que recebam intervenções do poder público ou de privados, não parecem se transformar significativamente.
As primeiras conversas com especialistas já deixavam claro a baixa eficácia de um “censo de cortiços”, que perderia a validade rapidamente, uma vez que os processos de “nascimento” e “morte” desses imóveis são muito dinâmicos.
Assim, os dados quantitativos apresentados em mapas e gráficos no documento disponibilizado na íntegra no site do LabCidade são, portanto, limitados, tendo em vista a invisibilidade, as mudanças dos imóveis precários, além das limitações da própria pesquisa, realizada em poucos meses, com metodologia diversa, sobre uma vasta extensão territorial (a Operação ocupa 1.699 hectares). Contudo, reconhecendo que dados quantitativos são uma ferramenta importante para formular políticas e estabelecer metas e prioridades, elaboramos um Mapa (no topo deste texto), apresentando 892 imóveis precários levantados e as áreas encortiçadas encontradas. Deve-se considerar que este Mapa representa “o mínimo” de precariedades habitacionais encontradas nos perímetros de adesão e expandido da OUCBT no período pesquisado, precariedades estas que não requerem apenas soluções de substituição por moradias novas, mas também melhorias nas unidades, transformações urbanas da região como um todo, entre outras medidas.
Dentre as tipologias identificadas nos imóveis, mais de 80% são cortiços. Alguns estão concentrados em áreas que não apareciam em levantamentos anteriores, como a área da Avenida Tereza Cristina e a Vila Prudente. A coabitação no lote é outra tipologia encontrada e representa 10% dos casos, estando localizada nas áreas mais ao Sul do perímetro, em bairros que se consolidaram nos últimos 30 ou 40 anos. As ocupações, por sua vez, aparecem em bem menor quantidade, correspondendo a cerca de 3% dos imóveis. As favelas se concentram ao Sul do perímetro, com dimensões muito diversas, englobando a grande Heliópolis e a histórica Vila Prudente, mas também pequenos núcleos.
A pesquisa identificou também que há uma variação bastante significativa na quantidade de cômodos por imóvel (ou de domicílios em cortiço), com casos extremos que chegam a 85 e 86 cômodos, outros com 3 ou 2, sendo o mais frequente os de 6 cômodos.
O valor do aluguel varia mais no caso dos cortiços, com preços entre R$ 300,00 e R$ 1.200,00. Entretanto, a média de preços em todas as tipologias não apresenta grandes diferenças: R$ 570,00 nos cortiços; R$ 469,00 nas coabitações; R$ 584,00 nas pensões. De qualquer modo, é importante relacionar esses preços com o valor disponibilizado às famílias pelo programa de bolsa aluguel, fixado em R$ 400,00, que pode representar uma espécie de indexação mínima nesse mercado informal.
O valor do metro quadrado alugado é bastante alto, tendo-se em vista que os cômodos são, em geral, de pequenas dimensões. Trata-se de um negócio bastante rentável para proprietários e intermediários, difíceis de serem identificados e, em certos casos, ausentes nos relatos de moradores. Imbróglios jurídicos, problemas de herança ou falência, tombamentos e ocupações reincidentes podem estar entre os motivos para que o uso como moradia precária se estabeleça.
A pesquisa apontou, ainda, que a insegurança jurídica da posse aos locadores é condição recorrente e estrutura as relações de aluguel na informalidade. Esses moradores se submetem a essas condições justamente pelas “vantagens” presentes na informalidade, que não exige garantias de fiador ou contratos.
Além disso, o estudo foi revelador de condições de vida que somam vulnerabilidades. As inseguranças da condição de estrangeiro, imigrante ou refugiado; a violência contra a mulher e outras questões de gênero; a ausência da figura masculina (companheiro ou pai) e a existência de famílias monoparentais, com muitos filhos ainda pequenos; o trabalho “autônomo” viabilizado no limite da precarização e, ainda assim, associado à produção formal da indústria; o “nomadismo involuntário” provocado por conflitos familiares, despejos, incêndios e outras instabilidades em relação à moradia; o “mundo do crime”, tráfico e consumo de drogas; a polícia e o sistema prisional. Para dar apoio à superação destas vulnerabilidades, atuam diversas igrejas e seus projetos; há solidariedade entre os próprios moradores (os estrangeiros e refugiados, de maneira patente); há “ações sociais” diversas, mais ou menos institucionalizadas ou formalizadas na rede de assistência social, particularmente aquelas focadas no trabalho com população em situação de rua. Cada uma dessas questões é complexa e todas estão intimamente relacionadas.
Essas vulnerabilidades, presentes na vida cotidiana das pessoas com quem nos deparamos no trabalho de campo, parecem se articular na conformação de uma “informalidade estruturante”: na condição mais elementar da cidadania (ter documento), nas composições e relações familiares, nas relações de trabalho ou com as instituições. A informalidade é, contudo, apenas mais um aspecto da questão: a moradia, sua localização e sua habitabilidade são parte de um sistema complexo de necessidades, compondo as estratégias mais elementares de sobrevivência.
Os resultados obtidos nos provocam, como pesquisadores, a compreender os novos processos de transformação pelo qual vem passando a moradia precária, exigindo uma revisão de teses e grandes narrativas, no confronto com a realidade e a complexidade das situações encontradas a partir da imersão no território.
Certamente, uma operação urbana não seria o único, nem o principal, instrumento para dar conta dessa complexidade evidenciada pela pesquisa sobre as moradias precárias em área central. Ainda assim, procuramos fazer recomendações para uma revisão deste projeto de lei, à luz destas considerações e, também, ao Plano Municipal de Habitação. Os dois projetos ainda serão debatidos junto à Câmara de Vereadores.
A seguir, apresentamos as tipologias mapeadas na pesquisa de campo e as definições que utilizamos para cada uma.
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*Paula Santoro é arquiteta e urbanista, doutora em Habitat pela FAU USP com bolsa na Universidade Politécnica da Cataluña e professora de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da FAU USP. Atualmente coordena o projeto ObservaSP junto ao LabCidade FAU USP. Lattes | Academia.edu
** Caio Santo Amore é professor do departamento de tecnologia da FAU USP e membro do Conselho Municipal de Habitação – CMH
*** Maria Rita de Sá Brasil Horigoshi possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo (2009). Atualmente é diretora geral da assessoria técnica Peabiru Trabalhos Comunitários e Ambientais, onde atua desde 2007
****Daniela Perre Rodrigues possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. Atualmente é Diretora Administrativa da Assessoria Técnica Peabiru Trabalhos Comunitários e Ambientais. Tem experiência na área de Arquitetura e Urbanismo, com ênfase em desenvolvimento de projetos de habitação de interesse social; desenvolvimento e aprovações de projetos de urbanização e regularização fundiária em assentamentos precários; e assessoria técnica a movimentos populares urbanos
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[…] Para ler o relatório completo, acesse o blog observaSP. […]