Este texto faz parte de uma série de publicações em nosso site com os artigos da equipe do LabCidade e parceiros no congresso Fórum SP 21: Plano Diretor e Política Urbana de São Paulo, realizado de maneira virtual entre os dias 21 e 30 de setembro de 2021. Os textos enviados ao evento foram levemente alterados para estar aqui em uma versão mais enxuta.
Por Lais Boni Valieris, Tereza Djane Arrais e Vitor Inglez de Souza em nome da Articulação Vila Andrade*
O Plano Diretor Estratégico (PDE) de 2014 inovou ao formular os Projeto de Intervenção Urbana (PIU) enquanto instrumentos para a transformação urbanística de grandes áreas da cidade. Os PIUs permitem a definição de zoneamento e parâmetros urbanísticos distintos para perímetros específicos da cidade, para os quais devem ser cumpridos alguns requisitos de projeto que incluem propostas urbanísticas, sociais, ambientais, econômicas e instrumentos que os viabilizem, como operações urbanas, áreas de intervenção urbana, concessão urbanística e áreas de estruturação local.
A Macroárea de Estrutura Metropolitana (MEM), através de seus subsetores chamados Arcos, foi definida como prioritária para aplicação dos PIUs. Essas áreas foram consideradas estratégicas para a cidade por estarem ao longo das orlas fluviais e articuladas ao sistema rodoviário e ferroviário da cidade que conecta São Paulo a outros municípios. Além disso, essas áreas apresentam grandes vazios urbanos e mudanças recentes nos seus usos e ocupação do solo, apresentando grande potencial de transformação urbana. Entre os Arcos definidos pelo PDE está o Arco Jurubatuba (ACJ), que incluiu em seu perímetro um trecho do território com características muito distintas da MEM, localizado entre os distritos de Vila Andrade e Campo Limpo. É um território em que não há grande possibilidade de transformação, pois tem uma urbanização bastante consolidada, com a presença de muitos assentamentos vulneráveis e aproximadamente 30% do trecho está demarcado como ZEIS (Zona Especial de Interesse Social). Dado esse contexto, o desenvolvimento do PIU-ACJ apresentou muitos conflitos com as áreas de ZEIS, que não se restringiram somente ao trecho da Vila Andrade. Essa experiência trouxe importantes alertas e aprendizados sobre a relação entre os dois instrumentos, e que merecem maiores reflexões.
O PIU ACJ foi desenvolvido em 2017 e teve sua versão final encaminhada à Câmara em 2018. Nesse tempo, o projeto teve apenas dois momentos de participação popular: uma consulta pública feita apenas de maneira online, baseada em um diagnóstico inicial da área, entre junho e julho de 2017; e já no final do projeto, entre fevereiro e março de 2018, que contou com outra consulta pública online, uma consulta aos órgãos colegiados – como o Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), Câmara Técnica de Legislação Urbanística (CTLU) e Conselhos Participativos Municipais (CPMs) da região – além de três audiências públicas no perímetro do PIU. Esse segundo momento teve como base para discussão as propostas de intervenção na região, como por exemplo as áreas verdes, melhoramentos viários e novos parâmetros urbanísticos, além da modelagem econômica financeira, que se baseou no instrumento de Áreas de Intervenção Urbanas (AIU).
Até o momento das audiências públicas, as populações residentes das ZEIS não sabiam da existência do projeto – elas tomaram conhecimento somente através da Defensoria Pública. Nas audiências, os moradores e moradoras de áreas de ZEIS se depararam com propostas de intervenções que violavam seus territórios, principalmente através de propostas de melhoramentos viários e áreas verdes. No total, 8 áreas de ZEIS do ACJ apresentaram proposta de intervenção. Em contrapartida, não havia qualquer proposta que previsse a oferta de moradia, nem a intenção de criar os conselhos gestores de ZEIS para debater as propostas, como exigido por lei, apenas o cumprimento à determinação do PDE de destinar 25% dos recursos arrecadados no perímetro para Habitação de Interesse Social (PDE, Art.146). Através de reuniões bilaterais com a Prefeitura, a pedido da Defensoria Pública e lideranças dos territórios, foi possível alterar trechos do Projeto de Lei (204/2018, art. 16; veja primeira versão da Minuta) de modo a inserir maiores garantias aos territórios das ZEIS, como por exemplo explicitar o condicionamento da aprovação dos projetos na área aos respectivos Conselhos Gestores de ZEIS e da formulação de um plano de reassentamento, quando necessário, que respeite uma distância máxima dos assentamentos originários das famílias.
Apesar do PDE definir em seu artigo 48 § 4º que em ZEIS 1 e 3, “a instalação do Conselho Gestor deverá preceder (grifo nosso) a elaboração do plano de urbanização, que por ele deverá ser aprovado”, a relação com os PIUs não está clara. O decreto que os regulamenta também não se atentou à essa questão, deixando margem para situações como a do ACJ, na qual, para a SP Urbanismo, a formação dos Conselhos Gestores das ZEIS não era uma condicionante para o desenvolvimento do projeto – só deveriam ser formados apenas quando houvesse dinheiro em caixa. Também não houve confirmação de que a priorização das obras do PIU fossem discutidas pelo Conselho Gestor das AIUs, também previsto no Projeto de Lei (PL 204/2018 Art. 57). Segundo a Secretaria de Habitação (SEHAB), também não era o momento de formar os Conselhos Gestores de ZEIS já que o horizonte de implementação do PIU dependia das arrecadações, o que poderia se prolongar por muitos anos, e por isso não fazia sentido mobilizar os conselhos que possuem mandatos de 3 anos (segundo Portaria SEHAB 146/2016, art. 5º) para um horizonte tão distante das intervenções.
A Defensoria Pública teve um entendimento diferente. Preocupada em resguardar o direito das famílias da região e não permitir a fragilização de seus territórios sem a devida participação dos moradores e da garantia de atendimento, ajuizou uma Ação Civil Pública (ACP) pedindo a suspensão da tramitação do PL na Câmara, a qual foi concedida em abril de 2019 (n.processo. 2072081-49.2019.8.26.0000). Desde então, instituições de assessoria técnica popular e lideranças locais vem mobilizando os moradores(as) da região através do grupo Articulação da Vila Andrade (veja a carta aberta do grupo), formando uma frente de resistência às ameaças de remoções previstas no PIU e de outras ações de reintegração de posse na região.
Este trabalho tem o objetivo apresentar o relato da experiência das populações moradoras de território marcadas como ZEIS dentro do perímetro do PIU-ACJ. Através dessa experiência prática e de uma revisão bibliográfica, o objetivo é discutir a relação entre os PIUs e as ZEIS e seus mecanismos de participação popular. O relato pretende chamar a atenção para a aplicação dos PIUs e contribuir para o amadurecimento dos instrumentos urbanísticos de modo a evitar violações de direitos, integrar melhor o planejamento urbano com as políticas habitacionais e garantir o direito à moradia.
* Fazem parte os seguintes movimentos e entidades: União dos Movimentos de Moradia de São Paulo, Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, LabCidade FAUUSP, LabJuta UFABC, BRCidades, Defensoria Pública do Estado de São Paulo, Luta Popular, Associação Civil Sociedade Alternativa, Observatório de Remoções.
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