Por Paula Santoro e Raquel Rolnik*
Está em tramitação no Congresso um projeto de lei que prevê auxílio de 4 bilhões de reais para o setor de transporte coletivo operado por concessionárias contratadas pelos municípios — e, em alguns casos, por governos estaduais. O projeto vem ao encontro da crise das concessionárias privadas em face à diminuição drástica do número de passageiros em função das políticas de isolamento social. As companhias que operam os serviços de transporte público na cidade perderam passageiros, perderam receita, e, portanto, começaram a pressionar os governos a fim de receber um valor extra para garantir seus custos e pagamentos.
De acordo com o projeto que está em tramitação na Câmara, municípios e estados receberão recursos para repassar às concessionárias sob a forma de créditos eletrônicos de passagem, equivalentes ao valor da tarifa de cada localidade. É como se as empresas estivessem recebendo antecipadamente a tarifa de um número de passageiros — estes poderão usar o transporte coletivo gratuitamente após a pandemia. Os créditos, obtidos através do subsídio federal, serão distribuídos pelos governos municipais e estaduais. Ainda está em debate a proposta de que os governos que receberem os subsídios federais deverão elaborar planos emergenciais de estímulo à mobilidade ativa e redução da poluição ambiental como contrapartida.
A solução, emergencial, parece fazer sentido: as empresas não quebram e os governos ganham um instrumento de apoio social importante para incluir os mais vulneráveis no pós-pandemia. Entretanto, existem falhas nessa equação que valem a pena serem apontadas.
Na verdade, é preciso dizer que há um problema estrutural no modelo de gestão do transporte público. Não tem a ver com a pandemia, mas sim com o modelo hegemônico de remuneração do serviço, baseado no pagamento de tarifa pelos passageiros. Este modelo cria dois problemas sérios. O primeiro deles é a exclusão progressiva da população do acesso ao transporte conforme o aumento nas tarifas, que sobem sem parar, e comprometem, inclusive, outros gastos das famílias. Segundo, este modelo condiciona o lucro das empresas de ônibus à quantidade de passageiros por viagem. Ou seja, quanto mais lotarem os carros, mais elas arrecadarão.
Por isso, há toda uma luta histórica dentro do setor de transporte para que as empresas prestadoras sejam remuneradas pelo custo da viagem, por quilômetro, e não por passageiro. Sem depender da tarifa, esse transporte coletivo seria mais eficiente, com qualidade, mais confortável. Alguém pode dizer: “mas isso vai requerer mais subsídio público”. Sim, vai. Nenhum sistema de transporte coletivo no mundo opera sem subsídios. Jogar o custo deste sistema nas costas do passageiro é condenar eternamente a qualidade do transporte público no Brasil.
A questão fundamental durante a pandemia é como garantir transporte coletivo de qualidade e seguro sem lotar os ônibus. A questão no pós-pandemia é como isso pode se transformar em um modelo futuro, mobilizando subsídios, mas também evidentemente exigindo algum tipo de compensação, de contrapartida, por parte das empresas.
Além disso, o setor dos transportes requer transparência e controle público dos custos, das contas, dos investimentos. Seja qual for o projeto aprovado no Congresso, é muito importante que saibamos exatamente quanto dinheiro entrou na prefeitura, quanto entrou em cada empresa, no que foi usado, e como se transformou eventualmente em gratuidades e outros benefícios públicos para os mais vulneráveis.
Aceitar que o transporte público não tenha qualidade, siga lotado, e com isso deixe de ser utilizado (ainda assim custando muito para o poder público), significará uma migração em massa da população para transportes individuais — carro e moto, principalmente — condenando nossas cidades a um modelo rodoviário poluente, que mata, que é insustentável em termos ambientais e inacessível para grande parte da população.
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