Por Raquel Rolnik*
Nas últimas duas décadas, uma crise habitacional se espalhou pela Europa e Estados Unidos, em países que já tiveram uma situação bem melhor em termos de acesso à moradia adequada, resultado de uma poderosa mudança de paradigma no campo da política habitacional, mas também em seu significado em termos culturais, na qual a moradia, mais que um lugar para se viver com dignidade, tornou-se um ativo financeiro. Isso distorceu o funcionamento dos mercados imobiliários residenciais e fundiários, assim como também provocou um aumento no número de moradores de rua e um desequilíbrio entre custo da moradia e sua qualidade e a renda das famílias.
No Reino Unido de 2019, muitas famílias estão gastando metade do salário para pagar um aluguel ou hipoteca, mas vivem em habitações inadequadas ou inseguras. Esses gastos na verdade tem basicamente aumentado o valor o valor dos ativos e os rendimentos dos proprietários, inflando o preço da moradia ao mesmo tempo em que aumentam a desigualdade e a pobreza do país. Dadas as dimensões e diversidade regional do país, a crise habitacional é muito distinta dependendo da cidade ou região onde a pessoa mora e sua inserção econômica. As piores situações estão em Londres – cidade mais rica do Reino Unido – entre trabalhadores precarizados de baixa renda e os jovens.
Embora a atual situação seja resultado de uma combinação de fatores, um dos mecanismos mais importantes para explicá-la foi a mudança iniciada por Margaret Thatcher para descolar a moradia das políticas sociais. A então primeira-ministra britânica autorizou a venda de moradias sociais – então quase 40% do estoque residencial total do pais – para os inquilinos, além de desviar os subsídios públicos que até então apoiavam os municípios e os provedores de moradia social para que pudessem expandir e manter o estoque de moradia social a preços baixos, na direção de promover a compra da casa própria por meio de crédito hipotecário.
Ao mesmo tempo, como essas medidas também eram parte da reforma do sistema de bem-estar social como um todo, transformando-o em um sistema de bem-estar baseado em ativos financeiros, todo o sistema financeiro passou a depender enormemente dos valores inflados da moradia como garantia dos empréstimos. Desta forma, muitos proprietários passaram a depender do aumento do preço dos imóveis para financiar seu consumo e velhice. O resultado disso é que a Grã-Bretanha, com variações internas, registra a maior escalada histórica do preço médio da moradia entre os países mais ricos.
Em casos como o de Londres, esses preços foram ainda mais inflados, em função da propriedade residencial ter se tornado um investimento para as elites econômicas transnacionais, transformando casas e apartamentos numa espécie de “cofres” onde estacionam seu capital excedente. Desde minha visita ao Reino Unido em 2013 como relatora especial da ONU sobre o direito à moradia adequada, a situação sofreu uma piora significativa. A estratégia do governo britânico tem sido – desde então e até agora a de apoiar a construção de mais casas para venda no mercado, apostando na ideia de que se trata simplesmente de um desequilíbrio entre oferta e demanda. Para isto tem incentivado a venda de terras públicas para incorporadores e construtores em todo o país.
Embora seja verdade que é necessário construir mais casas e apartamentos e que terras públicas podem ser um insumo importante para isso, ao observar o resultado dessas estratégias, notamos duas coisas. Primeiro, a maioria das habitações construídas nos últimos anos foi ofertada e vendida para um mercado de renda média e alta. A população de baixa renda – que mais precisa – simplesmente não teve condições de comprar uma casa. De acordo com a política em curso os promotores devem construir uma parte de sua oferta como ” affordable (acessível)” . entretanto, affordable só quer dizer um preço em torno de 80% do valor de mercado – o que é mais barato, mas ainda assim inacessível para aqueles que não têm onde morar.
Em segundo lugar, o governo local e central vendeu terras públicas para quem ofertou o lance mais alto, contribuindo assim para aumentar o preço das casas e apartamentos produzidos sobre estas terras. Desde 2010, apenas uma em cada cinco moradias novas a serem construídas em terras públicas que foram privatizadas deve ser classificada como “acessível”, e somente 6% serão habitações sociais.
Chegou a hora de repensar essas políticas. Movimentos sociais de inquilinos, de moradores em conjuntos habitacionais públicos e sem-teto têm se organizado e proposto uma agenda no campo da moradia para o novo governo britânico que certamente sucederá Theresa May . Esta agenda incluiu medidas na direção da des-financeirização da moradia, o estabelecimento de um teto para regular o aumento dos aluguéis. E também a preservação do estoque ainda existente de moradia social com o fim do right-to-buy e a disponibilização das terras públicas para prefeituras, cooperativas e community land trusts promoverem moradia social. A moradia não é um caixa eletrônico – é um lugar para se viver. Enquanto a Grã-Bretanha não reorientar sua visão sobre a moradia, a crise habitacional vai continuar.
* Raquel Rolnik foi Relatora Especial da ONU sobre moradia adequada. Lançou seu relatório sobre moradia pelas Nações Unidas em 2013. A versão inglesa de seu livro Urban Warfare: Housing Under the Empire of Finance, lançado em 2018 pela VERSO, está disponível aqui. Texto foi publicado originalmente no jornal britânico Independent; sua tradução saiu primeiramente no UOL.
Os comentários estão desabilitados.