Raquel Rolnik*
Entre a noite da sexta-feira de 18 de março e a manhã do sábado seguinte, desapareceu de repente a presença histórica de usuários de drogas e traficantes na Praça Júlio Prestes, conhecida como Praça do Cachimbo. Pela enésima vez, a prefeitura anunciou que a Cracolândia acabou.
A narrativa disseminada pela Secretaria Executiva de Projetos Estratégicos da Secretaria de Governo Municipal foi de que esse desaparecimento teria se dado em função de uma série de ações efetivadas pelo poder público como a “ampliação de políticas de acolhimento, requalificação urbana da área, o combate ao tráfico e compartilhamento de inteligência”.
Mas o cenário logo se mostrou bem mais complexo. Imediatamente a Praça Princesa Isabel, nas redondezas, que já acolhia algumas barracas de sem-teto, amanheceu lotada. Em resposta a essa mudança do fluxo, a Prefeitura realizou na semana seguinte uma violenta ação de zeladoria.
Moradores do local relataram que os agentes da Prefeitura tomaram (ilegalmente) seus pertences (incluindo alimentos, documentação, colchões e cobertores), sem oferecer nenhuma forma de recuperá-los nem qualquer atendimento habitacional que não seja o abrigamento noturno, longe dali.
De acordo com a própria polícia, foram as próprias lideranças do crime organizado que ordenaram a mudança de local. Mas mais do que descobrir exatamente o que aconteceu, é muito importante ressaltar que a cena aberta de consumo de crack na cidade de São Paulo não acabou. Muito pelo contrário: ela se multiplicou. Se tínhamos, em 2017, 60 pontos de consumo de crack e outras drogas, hoje esse número é de 150, segundo dados de levantamento realizado pela Prefeitura.
Estamos falando aqui de uma população extremamente vulnerável, sem casa, família, estrutura ou apoio social, que encontrou acolhimento em uma rede de usuários e na drogadição, que alimenta e é alimentada pelo tráfico, dispersa pela cidade, sem ter qualquer perspectiva de atendimento, cura ou assistência.
O que percebemos nesses movimentos de espalhamento das cenas abertas de consumo de drogas está muito longe de resolver a questão social complexa de saúde mental (e também urbanística) que marca essa região.
Do ponto de vista da ação do poder público, parece muito claro que o objetivo primordial é limpar esta área, demolindo edificações para dar lugar a uma nova paisagem e mudar radicalmente o perfil social e racial de seus moradores, de forma a atrair para ela moradia e equipamentos de pessoas de maior renda.
Para este fim, foram mobilizadas ações violentas da Polícia Militar e da Guarda Civil Municipal contra usuários e moradores e remoções de comércios, e outros geradores de renda, além do despejo sem atendimento habitacional adequado de centenas de famílias que moravam em pensões e ocupações precárias.
Verdadeiros refugiados urbanos, esses ex-moradores se somam ao enorme e crescente contingente de sem teto e sem terra que ocupam as ruas e praças de nossa cidade, e continuarão nesse estado permanente de transitoriedade e sujeição à remoção e expulsão. a menos que finalmente, as gestões municipal e estadual encarem a questão em sua complexidade, incluindo inclusive o direito à moradia como parte essencial do problema – e sua solução.
* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.
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