Por Raquel Rolnik*
Hoje, no Brasil, 35 milhões de pessoas vivem sem acesso à água encanada e 100 milhões sem acesso à coleta de esgoto. Mas esses números trágicos escondem um cenário ainda pior, que muitos já devem ter percebido. Quando se fala em esgoto, são na verdade duas questões que deveriam ser tratadas separadamente: a coleta e o tratamento. Hoje, só metade do esgoto coletado (50,8%) no Brasil é tratado. O restante é retirado das casas e edificações, mas é lançado “in natura” nos córregos rios e mar.
Diferenciar a coleta do tratamento é importante, pois dá transparência ao serviço prestado. Vamos pegar um exemplo de São Paulo, estado com uma das melhores coberturas de água e esgoto do país: a Sabesp, companhia de capital aberto que opera o serviço em 375 dos 645 municípios de São Paulo, lucrou 2,3 bilhões líquidos só em 2021. Apesar disso, só na Região Metropolitana da capital cerca de 8,8 milhões de pessoas não têm seu esgoto tratado.
Em abril do ano passado. a Arsesp (Agência Reguladora de Serviços Públicos do Estado de São Paulo) fez uma série de revisões na tarifa da Sabesp, que opera o serviço em 375 dos 645 municípios do estado, e uma delas foi justamente separar a tarifa de coleta e da de tratamento (infelizmente, a medida foi revertida em março deste ano). Se tivesse sido mantida, a empresa não poderia mais cobrar por “esgoto” de forma abstrata, convenientemente omitindo onde faz a coleta mas não o tratamento.
Esta é só uma das dimensões dos desafios que o país enfrenta para universalizar o acesso à água e coletar e tratar todo o esgoto coletado.
Há um longo debate envolvendo as estratégias de enfrentamento destes desafios. Nos anos 70, foi instituído o Planasa (Plano Nacional de Saneamento), predominantemente baseado em um modelo de prestação de serviços através de companhias estaduais, com experiências muito diferentes nos diferentes estados. Ao longo destas décadas, algumas companhias avançaram no sentido de absorver mais e mais municípios, mas centenas de municípios ainda mantêm prestações diretas do serviço ou começaram a concedê-los para companhias privadas, sobretudo a partir dos anos 1990.
Dar mais segurança jurídica para a entrada de operadores privados foi uma das motivações para a revisão e aprovação, em 2020, do Novo Marco Legal do Saneamento. que também criou as bases para o estabelecimento de uma Agência Regulatória do setor, encarregada de normatizar para todo o país os parâmetros tanto para os contratos como para a performance dos serviços. A nova lei estabeleceu a meta de que, até 2033, 99% da população deve ter acesso a água potável e 90% a coleta e tratamento de esgotos.
Do ponto de vista do modelo de prestação de serviços, na nova lei o município continua como o titular, podendo escolher entre prestar diretamente o serviço ou concedê-lo para companhias estaduais ou privadas.
Entretanto, as companhias estaduais que têm contratos em andamento e não passaram por licitação do serviço precisam provar sua capacidade de atingir a meta estabelecida, caso contrário o município é obrigado a abrir uma licitação. O mesmo se aplica para as companhias privadas com contratos em vigor para além de 2033 e interesse em aditivos para continuar prestando o serviço.
Outra mudança importante é o forte estímulo ao chamado modelo de “regionalização”, cujo propósito é manter a atividade lucrativa mesmo em situações onde a maior parte dos usuários não têm condições financeiras de arcar com a tarifa, que é o caso da maioria dos locais com pior atendimento de saneamento. Isto se dá através de subsídios cruzados, ou seja: são organizados blocos de municípios para associar os “lucrativos” aos “deficitários”.
Com o novo Marco Legal, os municípios continuam podendo se associar livremente em consórcios, mas os estados têm a prerrogativa de obrigá-los a entrar nesses blocos da regionalização por meio de leis complementares.
17 leis dessas já foram aprovadas e 3 estão em tramitação, e o que vemos na implementação desse marco segue sendo a disputa entre companhias estaduais e prestadores privados. São Paulo, por exemplo, criou um bloco com todos os municípios operados pela SABESP, garantindo a continuidade de sua atuação. Já o Piauí, por outro lado, constituiu empresa regional pública através da doação de ativos da sua companhia estadual.
Tratar o saneamento a partir de seu potencial econômico, das tarifas que este pode gerar, seguramente não é a melhor forma de garantir o direito à água e ao esgoto. Isso é evidente quando olhamos para o que está acontecendo agora em Ouro Preto. Em um texto no portal Outras Palavras, Reginaldo Luiz Cardoso conta como desde que um acordo entre a prefeitura e a megacorporação coreana-espanhola-brasileira Saneouro privatizou a Companhia Municipal de Saneamento e a empresa começou a destruir de patrimônio histórico tombado da cidade para instalar hidrômetros, a cidade está em pé de guerra.
A resposta dos cidadãos, que não foram consultados em nenhum momento durante esse processo, foi categórica: desde o anúncio do edital da licitação, lideranças de bairro e movimento sociais organizaram protestos, uma vigília em frente à Câmara Municipal, fogueira coletiva com as contas abusivas, barraram as obras e, quando a Saneouro trouxe a Polícia Militar para reprimir a autodefesa, incendiaram uma viatura da empresa.
A ação direta da revolta deu resultados: este foi um dos temas levou à derrota nas do prefeito responsável pelo acordo nas eleições de 2020 e a Câmara a instaurou uma CPI para investigar irregularidades na concessão. Recentemente, as mobilizações populares conseguiram que fosse aprovada a realização de um referendo, no qual o povo poderá votar se desejam ou não a revogação do contrato com a Saneouro, cujo nome faz referência à cidade mas também evoca justamente a ideia a partir da qual ela se institui: água e saneamento como negócio, não direito.
* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade.
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