Júlia de Sá, Isabella Alho, Luiza Fegadolli, Paula Santoro*
A demolição da Casa Helenira Preta II foi rápida. Argumentando que uma parte da casa estava em situação de risco e iniciando no dia 05/03 (três dias antes da comemoração do Dia Internacional de Luta das Mulheres) um processo administrativo de remoção forçada, sem mandado judicial, o poder público agiu rapidamente para impedir a entrada das mulheres no local, não deixando margem para que as ocupantes questionassem, demorando para divulgar o laudo e “eficientemente” demolindo a casa, que acolhia mulheres vítimas de violência, no dia 23/03.
Outras casas como esta têm sido ameaçadas, em um processo de remoção duplo: estas mulheres já haviam sofrido “despejo por violência doméstica” (termo utilizado pela Raquel Ludermir) e agora foram removidas do espaço que lhes dava acolhimento, e que inclusive era também moradia de uma família. Mas estas desposessões têm fortalecido o movimento de mulheres que resiste, é forte e não teme, como a própria Helenira Preta, revolucionária brasileira guerrilheira do Araguaia.
Instalada em um terreno público que abrigou um dia uma escola estadual abandonada há 13 anos, sem cumprir sua função social, a Casa Helenira Preta II nasceu em 25 de julho de 2021, Dia Internacional da Mulher Negra Latino Americana e Caribenha, organizada pelo Movimento de Mulheres Olga Benário. Funcionava como uma Casa de Referência de acolhimento de mulheres em situação de violência na região do ABC, na cidade de Mauá, Estado de São Paulo. O espaço também abrigava uma creche popular, uma horta comunitária, diversos saraus, oficinas de recreação para crianças, aulas de defesa pessoal para mulheres e outras atividades de cultura, educação e lazer. A casa ainda era moradia de uma família, composta por uma mãe e seus três filhos.
Na tarde do dia 05 de Março de 2022, justamente na semana do Dia Internacional das Mulheres, apoiadores do Movimento de Mulheres Olga Benário mediavam uma reunião entre o poder público municipal da cidade de Mauá e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas. Enquanto tal reunião acontecia, a casa que abrigava mulheres foi invadida pela Guarda Civil Municipal (GCM) com uma viatura da patrulha da Maria da Penha, sem autorização judicial ou até mesmo aviso prévio. O ato ocorreu conforme ordens da Prefeitura de Mauá, que ordenou à GCM a impedir a entrada do movimento e outras pessoas no local, inclusive da família que se abrigava na ocupação, composta por uma mãe e seus três filhos. A remoção foi executada pelo poder público, mesmo estando sob o contexto da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendia as remoções na pandemia, usando como base uma ação que questionou a constitucionalidade das remoções na pandemia, chamada Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 828.
A justificativa mobilizada pela prefeitura para a remoção forçada foi uma suposta situação de risco existente no local, a qual não foi especificamente explicitada, visto que de início nenhuma pessoa vinculada a ocupação, nem mesmo o movimento, obteve informações do poder público ou acesso à documentos que indicavam o tipo ou grau de risco no local. Alguns dias após a invasão da GCM, o movimento acessou a documentação sobre a situação do terreno, porém observou que o laudo acerca do risco emitido pela Defesa Civil considerou somente um cômodo da ocupação, o qual justamente não era utilizado para as atividades da ocupação. Posteriormente, o poder público municipal não ofereceu nenhum espaço destinado para o diálogo e participação popular do movimento sobre as decisões e intervenções a serem tomadas no local.
Embora o argumento do risco tenha sustentado o processo de remoção, a Prefeitura pode ter colocado mais uma família na rua para uma nova situação de risco, fomentando o ciclo de “transitoriedade permanente” das famílias que são removidas e tem que se deslocar forçosamente mais de uma vez, tornando situações transitórias como algo permanente.
A prefeitura não garantiu nenhum atendimento habitacional e social provisório ou definitivo às vidas da mãe e seus três filhos que se abrigavam na casa, e a família foi removida de maneira forçada para a rua sem qualquer apoio. Colocou-as novamente em situações de vulnerabilidade, agora a outros riscos, novamente expostas à situações de violência que as levaram a morar na Casa. A mobilização do risco, pouco dialogada, fomentou outro ciclo vicioso de risco à vida.
Também não foi fornecido qualquer acolhimento ou atendimento às mulheres vítimas de violência. A ação da prefeitura de Mauá suspendeu o atendimento ofertado gratuitamente pela Casa Helenira Preta a diversas mulheres, as quais justamente por serem vítimas de violência, necessitam do acolhimento da casa para sua segurança e para se restabelecer e ter uma vida com mais autonomia. E não foi ofertada nenhuma alternativa para a continuação do trabalho voltado às pessoas atendidas pela casa.
Apesar da luta pelo direito à vida e fim dos despejos organizada nacionalmente e internacionalmente pela Campanha Despejo Zero, e da pressão popular das mulheres do Movimento de Mulheres Olga Benario – que permaneceram por mais de 100 horas em vigília no local –, a prefeitura da cidade de Mauá ordenou a demolição imediata da ocupação. Esta ocorreu com base em um laudo da Defesa Civil, porém sem nenhuma tentativa de diálogo e, novamente, sem direito de contestação das pessoas envolvidas no caso, como do movimento social e família que vivia no local, dado que foi uma remoção de caráter administrativo, sem processo judicializado.
“A invasão, remoção administrativa e posterior demolição do imóvel, além de ações ilegais cometidas pela prefeitura de Mauá, demonstram que o Estado e as políticas públicas, em seu limite, estão a serviço da propriedade privada e das elites, em detrimento das necessidades da maior parte da população. O Movimento se organiza para responder a questões de violência, geração de renda, educação, etc que não são promovidas pelo poder público e este, além de não cumprir seu papel, ataca quem lutam pela garantia de direitos fundamentais”
(Luiza Fegadolli, coordenadora nacional do Movimento de Mulheres Olga Benario).
A recente atualização trimestral do mapeamento colaborativo de ameaças e remoções forçadas do Observatório de Remoções, coordenado pelo LabCidade da FAUUSP, mostrou que, na maioria dos casos, as remoções têm fomentado conflitos e injustiças e, sobretudo, possui uma relação intrínseca com o crescimento da população em situação de rua em São Paulo.
A relação destes processos de remoção com a vida das mulheres, também mostrou-se frequente. Com um olhar interseccional para as remoções, as pesquisadoras do Observatório de Remoções, Larissa Lacerda, Marina Harkot, Paula Santoro, Isabella Alho e Gisele Brito (2020) já haviam ressaltado, em texto analítico, que os processos de remoção são atravessados, substancialmente, por consequências e impactos em determinados territórios e corpos. Quando se trata de gênero, as remoções estão relacionadas com várias violências que têm consequências negativas e impactam seus corpos e vidas, considerando que a mulher é a principal responsável pelo espaço de cuidade e reprodução da vida.
A pandemia de COVID-19 e a crise econômica consequente, sem dúvida, tem afetado com maior profundidade a vida das mulheres, sujeitos e sujeitas que vivem em territórios populares. A demolição da Casa Helenira Preta II, espaço que representava vida e de acolhimento às mulheres e crianças, que finalmente fez cumprir a função social do antigo terreno abandonado, foi um atentado à vida, especialmente das mulheres em São Paulo, refletindo o caráter mais violento das remoções aos corpos e territórios mais vulneráveis dos populares.
Nesse contexto, segundo Luiza Fegadolli, coordenadora do Movimento de Mulheres Olga Benario, o movimento considerou que esse ataque foi um impulso para seguirmos lutando pela vida das mulheres e crianças e por uma vida justa para todos os trabalhadores e trabalhadoras. O despejo e demolição não significaram o enfraquecimento ou o fim das ações do movimento, mas, pelo contrário, uma reorganização para maior radicalização das lutas.
Espaços organizados pelo Movimento de Mulheres Olga Benario:
- Casa Helenira Preta I
Rua Almirante Barroso, 146 – Mauá
930191900
- Casa Preta Zeferina
Ladeira do Baluarte, 46 – Santo Antônio Além do Carmo – Salvador/BA
(71) 9 9101-9876
- Casa de Referência da Mulher Tina Martins
Rua Paraíba, 641 – Funcionários, Belo Horizonte/MG
(31) 3658-9221
- Casa de Referência da Mulher Almerinda Gama
Rua da Carioca, 37 – Centro – Rio de Janeiro/RJ
(21) 979619276
- Casa Antonieta de Barros
Av. Prefeito Osmar Cunha, 136 – Centro – Florianópolis/SC
(48) 991323804
- Casa de Passagem Carolina Maria de Jesus
Av. Dom Pedro I, 939 – Santo André
(11) 97873-4389
- Casa de Referência Mulheres Mirabal
Rua Souza Reis, 132, Bairro São João – Porto Alegre/ RS
(51) 993937787
8. Centro de referência Soledad Barret
Av. Conselheiro rosa e silva, 720- Aflitos- Recife/PE
819- 98110161
- Casa Laudelina
Rua Padre Vieira 145, Canindé. São Paulo SP, 03030-000
*Júlia de Sá é bacharela em Gestão Ambiental (EACH-USP), mestranda em Planejamento e Gestão do Território (UFABC) e pesquisadora do Observatório de Remoções e Projetos de Conflitos Fundiários Urbanos do Instituto das Cidades, Unifesp. Isabella Alho é pesquisadora e Graduanda em Engenharia (UFABC) e integrante da Campanha Despejo Zero. Luiza Fegadolli é bacharela em Ciências e Humanidades e Graduanda em Políticas Públicas (UFABC) e coordenadora do Movimento de Mulheres Olga Benario e da Casa Helenira Preta. Paula Santoro é professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade
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