Por Giovanna Bonilha Milano, Júlia Nascimento de Sá, Ana Luiza Vieira Gonçalves*
A precariedade habitacional e a insegurança de posse não são condições novas para grande parte da população marginalizada da capital paulista. Entretanto, com a crise sanitária causada pela pandemia de covid-19 e pela crise econômica decorrente desta e da instabilidade política no Brasil, esses fenômenos se acirraram ainda mais. No último trimestre, somente na Zona Leste do município de São Paulo, estima-se que haja ao menos 870 famílias em situação de ameaça de remoção e outras 382 famílias já submetidas à remoção forçada de suas moradias. Dentre as justificativas frequentemente mobilizadas nos casos mapeados, a maioria corresponde a conflitos de posse cujos desfechos se realizaram por meio de reintegrações de posse e de remoções administrativas. Além disso, tanto os casos de remoção, quanto aqueles relativos às ameaças de remoção, afetaram principalmente famílias em territórios populares localizados em áreas de ZEIS-2, caracterizados pela presença de lotes subutilizados ou não edificados, adequados à urbanização e que, portanto, deveriam ser destinados prioritariamente a promoção de habitação de interesse social.
Este contexto de remoções inscreve-se no ciclo de novas ocupações instaladas diante da crise econômica nacional, que foi agravada pela pandemia, com repercussão direta na interdição das condições de acesso à moradia adequada por parte significativa da população. A este respeito, merece destaque uma recente ocupação formada por cerca de 150 famílias, compostas por mulheres, idosos e pessoas com deficiência, alocada em um terreno de propriedade pública e privada no distrito de Vila Prudente, na Zona Leste de São Paulo. Entre os meses de julho e setembro deste ano, as famílias desse território foram impactadas por uma remoção parcial, por meio da qual ao menos 30 famílias foram retiradas de suas moradias, permanecendo as demais em constante ameaça de remoção. Um dado importante diz respeito à denúncia de que a operação organizada para retirada dos moradores contou com forte aparato policial de intimidação e repressão à população atingida.
Situação similar ocorreu no distrito de Iguatemi, com a execução de mandado de reintegração de posse em área privada ocupada por mais de 300 famílias. Também neste caso o momento da remoção foi marcado pela efetivação da remoção em pleno contexto pandêmico, a despeito do conjunto normativo que recomenda a suspensão de despejos, bem como pela violação de direitos das famílias atingidas diante da ausência de prestação de atendimento habitacional.
Pode-se citar, ainda, um terceiro episódio de remoção forçada no território Leste, precisamente no distrito de José Bonifácio, próximo ao caso anterior. Ao todo, cerca de 40 famílias foram removidas ilegalmente de uma ocupação recente em terreno da CDHU, demarcados como ZEIS-2, onde existem empreendimentos habitacionais que aguardam aprovação para início das obras. Segundo relatos, as demolições das moradias foram executadas de forma violenta pela Subprefeitura, juntamente com a GCM e seguranças privados contratados pela construtora dos empreendimentos previstos, com registro de ameaças de realização das demolições com as pessoas dentro de suas casas, sem o afastamento seguro das famílias e sem tempo hábil para retirada de seus pertences.
Os três casos acima relatados são exemplares acerca da tendência de intensificação dos conflitos fundiários nesta região e do surgimento de novas ocupações em bairros periféricos da capital paulista, fenômenos em grande medida relacionados ao aumento do preço da moradia e ao impacto produzido na renda das famílias. De acordo com estudos recentes, o salário médio de uma família de quatro membros na cidade de São Paulo — cerca de R$3.890,00 — só viabiliza a compra de imóveis com mais de 40 m² na extrema Zona Leste da cidade de São Paulo e em alguns bairros das zonas sul e norte. É certo que este processo de periferização não é uma novidade, mas vem se acentuando nos últimos anos, em especial com a supressão de programas habitacionais de grande porte voltados para populações das faixas 1 e 2 de renda, como o Minha Casa, Minha Vida.
O aprofundamento do processo de periferização em curso articula-se, concomitantemente, à expansão imobiliária e ao contexto de empobrecimento da população – marcado por altas taxas de desemprego, redução da estabilidade e dos direitos trabalhistas e aumento da fome. Os altos preços dos produtos imobiliários, e a consequente impossibilidade de acesso habitacional por parte significativa da população, acaba por tensionar os territórios populares que se tornam epicentros de disputas pelo espaço. As novas ocupações são a estampa do acirramento desses processos na capital paulista, sob as marcas do crescimento vertiginoso de populações em situações precárias de moradia, da ampliação das desigualdades socioespaciais e da consequente escalada de remoções forçadas e violentas.
* Giovanna é Professora do Instituto das Cidades, Campus Zona Leste, Universidade Federal de São Paulo. Coordenadora do Projeto Conflitos Fundiários Urbanos (PECFU) e pesquisadora do Transborda – Estudos da Urbanização Crítica; Júlia é Bacharela em Gestão Ambiental (EACH-USP) e pesquisadora do Observatório de Remoções, Projeto de Conflitos Fundiários Urbanos (PECFU) e Transborda – Estudos da Urbanização Crítica; Ana Luiza é mestranda PGT-UFABC e pesquisadora do LabJuta (UFABC) e Rede SAGEMM-IAU (IAU-USP)
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