Por Raquel Rolnik*
O comércio ambulante é uma atividade milenar. Me lembro que, nos anos 1990, uma das organizações que representava os trabalhadores ambulantes em São Paulo se chamava Sindicato dos Milenares, porque de fato vender coisas nas ruas, nas praças é tão antigo quanto a existência da própria cidade. Aliás, justificava a própria existência da cidade lá em seus primórdios.
Infelizmente, na cidade moderna a presença do comércio nas ruas passou a ser uma arena de conflito. Esta tensão se intensificou com a migração das atividades de comércio dos mercados e espaços públicos para o interior dos lotes privados, as lojas e galerias. Mas também se tornou cada vez mais intensa com a captura do espaço público pela circulação e seus requisitos de velocidades maiores. Atividades de permanência como o comércio ou as performances artísticas passaram então a ser reprimidas e reguladas através de restrições e fiscalização.
Essa tensão não é exclusiva da cidade de São Paulo, nem mesmo de cidades brasileiras ou latinoamericanas. Ela se faz presente em boa parte das cidades do mundo, onde uma parte da população utiliza essa atividade como meio fundamental para sobreviver. Mesmo mais de um século depois das intervenções modernizadoras nas cidades, o comércio ambulante perdura, firme e forte, como um dos elementos centrais das economias populares em todo o mundo.
Entretanto, permanecem os conflitos, numa espécie de guerra contínua em torno do uso do espaço público e das formas permitidas ou proibidas de trabalhar. É o que está acontecendo agora na cidade de São Paulo.
Nós tivemos, no final do mês de agosto, dois atos de protestos organizados por vendedores ambulantes. Um junto à subprefeitura da Mooca, outro no Viaduto do Chá, próximo à sede da administração municipal.
Os protestos aconteceram em oposição às ações da Prefeitura de tirá-los das ruas, especialmente em algumas regiões do Centro e no entorno da Feira da Madrugada, na região do Brás.
A Feira da Madrugada começou na rua 25 de Março, no centro de São Paulo, e logo migrou para a região do Brás. A feira acontecia na rua e funcionava antes do horário de abertura das lojas e, por isso, recebeu esse nome.
Em 2006 a feira deixou as ruas e ocupou um antigo estacionamento de ônibus, um galpão onde a Feira da Madrugada funcionou de 2006 a 2018. Em 2018, foi realizada a realocação para um espaço conhecido como Amarelão, uma espécie de shopping center popular, com boxes para comerciantes cadastrados.
Isso significou que uma parte dos que ocupavam a Feira, parte significativa que não conseguiu se inserir no projeto, se deslocou para as ruas vizinhas. Agora, uma dessas ruas, a Rua Tiers está sendo objeto de um projeto da Prefeitura de transformá-la num boulevard. Um boulevard onde os ambulantes, que ocupam o lugar, não terão lugar.
Nenhum desses projetos está sendo discutido com eles e os ambulantes, então, têm protestado e pressionado a prefeitura para que não percam a possibilidade de trabalho. Com a força e a importância dessa atividade para sobrevivência, especialmente em momentos de crise e desemprego, como a que estamos vivendo, essa volta com tudo.
Não adianta imaginar que essa forma de comércio será eliminada. O comércio ambulante, como dito anteriormente, precede a cidade e todas as tentativas de eliminação acabaram não sendo totalmente implementadas.
Do ponto de vista urbanístico, entendemos que o comércio pode ser um dos usos da rua e pensar de que forma ele pode, assim, conviver com os demais, é um desafio bem mais interessante do que a quimera da cidade sem vendedores.
Benedito Barbosa, advogado do centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, também comenta a situação dos trabalhadores ambulantes na cidade de São Paulo.
Em tempo: José Rubens, então subprefeito da Mooca, contra quem foi dirigido o ato dos ambulantes, acaba de ser exonerado por Ricardo Nunes, alegando que “milícias” estavam dominando e cobrando pelo uso das calçadas no Brás.
* Professora da FAU-USP e coordenadora do LabCidade. Coluna originalmente publicada no UOL.
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