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Por Aluízio Marino, Benedito Roberto Barbosa, Débora Grama Ungaretti, Isabella Alho, Júlia do Nascimento de Sá, Larissa Lacerda, Renato Abramowicz Santos, Talita Anzei Gonsales e Ulisses Castro*
Na última atualização trimestral do mapeamento das remoções, publicada em abril, reforçamos a urgência de uma moratória nas remoções e despejos durante o período de pandemia. Entretanto, o que verificamos no período seguinte foi exatamente o contrário: um aumento no número de remoções em comparação ao período anterior. Na prática, o que temos acompanhado é que as remoções seguem acontecendo. Violando recomendações nacionais e internacionais, o deslocamento forçado de pessoas continuou – e continua – sendo realizado, por agentes públicos e privados. Ao invés de garantir as condições mínimas para que os indivíduos possam se proteger do vírus, o que temos visto é um acirramento dos conflitos fundiários diante de um cenário de emergência sanitária.
Na Região Metropolitana de São Paulo, entre abril e junho de 2020, identificamos seis remoções, que impactaram pelo menos 1300 famílias. Correspondendo ao dobro de casos mapeados no trimestre anterior (janeiro a março de 2020).
Também foram identificadas, a partir de denúncias de parceiros do Observatório, duas remoções no interior paulista, nas cidades de Ribeirão Preto e Piracicaba, que atingiram 70 famílias. Esse cenário pode ficar ainda pior, pois estão sob ameaça iminente de remoção pelo menos mais 700 famílias. Entre elas, 22 estão no interior do estado em uma ocupação no município de Araras.
A maior parte dessas remoções foram realizadas sob ordens de execução do Tribunal de Justiça. Em duas ocupações recentes, o Poder Judiciário, com manifestação favorável do Ministério Público, deu o aval pela execução das reintegrações de posse. Foi o caso da ocupação Taquaral, no município de Piracicaba, que abrigava 50 famílias, e da ocupação Cícero Ibiapina, no distrito de Guaianazes, no município de São Paulo, que abrigava 900 famílias. Cabe salientar que, em nenhum dos casos, foi ofertado alguma alternativa de atendimento habitacional às famílias atingidas.
As reintegrações de posse judiciais aconteceram à revelia das normativas do Poder Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), órgão responsável por desenvolver políticas judiciárias no âmbito nacional, editou sucessivas recomendações determinando não só a suspensão de prazos judiciais, mas também a suspensão do cumprimento de mandados judiciais e de atividades presenciais. Os prazos dos processos eletrônicos voltaram a correr no início de maio e o cumprimento dos mandatos passou a ser autorizado no início de junho, “desde que o cumprimento do ato não resulte em aglomeração de pessoas ou reuniões em ambientes fechados”. Tais recomendações, no entanto, não vinculam a atuação dos/as magistrados/as, assim, decisões favoráveis a remoção de pessoas continuaram sendo proferidas.
Em alguns casos, como o da Ocupação Locomotiva de Ribeirão Preto, a intensa mobilização dos moradores, movimentos de moradia e populares e sociedade civil organizada, com atuação de advogados/as populares, defensores/as públicos/as, conseguiu suspender o processo de remoção. A maioria dos casos que conseguiram a suspensão de remoções se tratavam de processos que já tinham decisão antes da pandemia, com reintegrações de posse marcadas para acontecer depois da segunda quinzena de março.
Dentre as remoções mapeadas, duas ocorreram sem processo judicial (por via administrativa ou realizada pelos proprietários) no município de São Bernardo do Campo. A Prefeitura realizou demolições de casas com base no decreto nº 20.417, de 2018, voltado à fiscalização de novas ocupações mas que também atinge bairros e áreas já consolidadas. No centro de São Paulo, em maio, uma remoção foi realizada diretamente pelos proprietários sem mandato e à revelia do processo judicial.
Já entre aquelas realizadas com o aval da Justiça Paulista, vale ressaltar o caso da ocupação na Vila Roseira II, no distrito de Guaianases, Zona Leste de São Paulo. No dia 16 de junho, em virtude de uma decisão judicial dada em caráter de urgência, em um plantão judicial, a ação de reintegração de posse foi autorizada, com o uso da força policial. Cerca de 900 famílias perderam suas casas. Mesmo neste atual cenário de pandemia imposto pela Covid-19, as famílias receberam apenas um comunicado para desocuparem o local, sem nenhuma proposta de atendimento habitacional. De acordo com relatos de uma liderança da ocupação, diante do descaso com as famílias face a ausência de apoio do poder público, assim como pela falta de opções de moradia, algumas famílias se acomodaram provisoriamente em casas de parentes e outras em barracos à beira de um córrego próximo do esgoto. Assim, fica nítido que a ação de remoção forçada ocorrida deixou as famílias ainda mais vulneráveis ao novo coronavírus, expondo-as a condições precárias de saneamento e prejudicando o distanciamento social, sendo estas recomendações básicas de prevenção à covid-19. O deslocamento das famílias para situações de igual ou maior precariedade, como o caso de Guaianases, tem sido um processo que se repete em outras regiões.
Diante do aprofundamento da crise econômica na pandemia, novas ocupações começam a surgir – algumas delas, já se encontram, rapidamente, sob o risco da remoção, como é o caso da ocupação Viva Jardim Julieta, no distrito de Vila Medeiros, Zona Norte de São Paulo. A ocupação teve início há cerca de dois meses, reunindo, sobretudo, moradores que viviam de aluguel em bairros do entorno e que, por conta da pandemia do novo coronavírus, não estavam mais conseguindo arcar com os custos da moradia. Ocupando uma área de titularidade da SP Urbanismo e destinada à construção de unidades habitacionais pela PPP Habitacional da COHAB, a ocupação, que se iniciou com poucas famílias, agora já conta com mais de 400. Inseridas em uma disputa histórica pelo uso da área – para a qual já foram formulados diferentes projetos ao longo dos anos – as centenas de famílias enfrentam, mais uma vez, a ameaça iminente da remoção, que, sem nenhuma alternativa habitacional oferecida, pode representar o deslocamento dessas famílias para outras ocupações, ou mesmo para uma situação de rua.
Frente a esse cenário de emergência sanitária e habitacional, no dia 19 de junho de 2020, o Centro Gaspar Garcia de Direitos Humanos, a Central dos Movimentos Populares (CMP), Frente de Luta por Moradia (FLM), Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), Associação Rural Renascer, Conselho Estadual de Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE) e o Observatório de Remoções denunciaram à Relatoria Especial para o Direito à Moradia Adequada da ONU os casos de reintegrações de posse, incêndios e despejos coletivos extrajudiciais que geraram remoções no estado de São Paulo em plena pandemia. Como resposta a essas graves violações de direitos humanos, a ONU divulgou nota em que demanda o fim dos despejos no Brasil.
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