* Por Gisele Brito, Isadora Marchi de Almeida, Larissa Lacerda e Leonardo Foletto
O novo Coronavírus, causador da doença Covid-19 que vem se espalhando pelo mundo desde o final de 2019, é, fundamentalmente, uma questão de saúde pública e, como tal, deve ser tratado com seriedade pelos Estados. Mas os primeiros casos e medidas adotadas por diversos países mostram que o coronavírus é também uma questão urbana, já que os impactos da doença e das medidas adotadas impactam fortemente as formas de produção, trabalho e a sociabilidade, que na contemporaneidade são tipicamente urbanas.
Até o momento, a cobertura da mídia tradicional sobre a Covid-19 indica que os mais afetados são principalmente pessoas de classe média e alta, ou com acesso ao sistema privado de saúde. Até o dia 12 de março, apenas o hospital privado Albert Einstein havia diagnosticado 98 casos em sua unidade no bairro do Morumbi, na Zona Sul da capital. Àquela altura, sem contabilizar essas testagens da rede privada, o número era o mesmo registrado pelo Ministério da Saúde em todo o país. Mas o avanço veloz da pandemia, sua popularização, periferização, favelização e o enegrecimento dos atingidos já está ocorrendo. É importante lembrar que historicamente ações higienistas miraram tais áreas e pessoas: remoções, expulsões e demolições justificadas em nome da saúde pública se consagraram como a “forma de lidar com o problema”, ao invés de construir soluções pautadas pela diversidade de pessoas e situações urbanas. Não podemos correr esse risco novamente.
A doença teve seus primeiros casos identificados na China e aterrissou em fevereiro no Brasil. Com o avanço do contágio no país – em 20 de março eram 793 pessoas infectadas – diversas medidas estão sendo tomadas para minimizar os impactos do vírus, tanto pelo poder público quanto individualmente e por setores da iniciativa privada. Em 19 de março as cidades com mais casos eram Rio de Janeiro e São Paulo, que têm quase metade dos registrados em todo país. Outras capitais possuem alguns poucos casos e a maioria das pequenas e médias cidades ainda não registrou pessoas infectadas.
De maneira geral, as principais recomendações feitas pela Organização Mundial de Saúde – OMS para prevenir o contágio parecem simples; inclui medidas sanitárias como lavar as mãos e usar álcool em gel, além de evitar aglomerações e ficar em casa, ações que afetam diretamente a dinâmica de circulação, economia e sociabilidade que definem as grandes cidades. Quando essas recomendações são colocadas em perspectiva em relação às diferentes realidades vividas, uma série de barreiras estruturais impedem sua realização. Assim, uma leitura simplista da cidade, de seus habitantes e das experiências urbanas pode levar à adoção de medidas igualmente simplistas, que ignoram a heterogeneidade e as desigualdades da experiência urbana. Em momentos como o que estamos vivendo, é necessária uma atuação que parta do reconhecimento da realidade sobre a qual se deseja intervir, sob o risco de aprofundar cenários de insegurança e precariedade ao invés de combatê-los.
Uma das principais recomendações para evitar o contágio é lavar as mãos com frequência, ação simples mas nem sempre viável para grande parcela da população das cidades, principalmente para aquelas que vivem em favelas e ocupações com saneamento básico e abastecimento d’água prejudicados. Também a população em situação de rua é bastante afetada aqui, encontrando ainda mais dificuldade para realizar cuidados básicos de higiene frente a quase inexistência de banheiros públicos na cidade. Atualmente, são 24.344 pessoas vivendo nas ruas da cidade de São Paulo, de acordo com dados do censo realizado pela prefeitura em 2019. Dessas, 7.002 tem mais de 50 anos, compondo o grupo de risco da Covid-19, sendo que o censo excluiu aquelas que vivem em barracos de madeira sob pontes e viadutos, o que indica a possibilidade de este número ser ainda maior.
A gravidade da Covid-19 aumenta de acordo com a faixa etária e impacta de modo mais severo pessoas com doenças preexistentes. Entender onde estas pessoas moram, trabalham e como usam a cidade é um importante ponto de partida para atuar na prevenção aos casos mais graves da doença. Nas periferias de São Paulo, em distritos de maior densidade habitacional, vive grande número de pessoas com 60 anos ou mais, além muitas pessoas negras, sendo que este grupo étnico representa 80% dos usuários que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde – SUS. Ao mesmo tempo, muitos destes locais sequer possuem equipamentos de saúde com leitos para tratamento de casos graves, o que pode resultar em um aumento da letalidade da doença para a população que vive nesses territórios, que terão menor acesso à esses equipamentos.
O próprio processo histórico de urbanização de São Paulo consagrou um modelo de cidade segregada racial e socialmente, distribuída entre adensadas periferias e alguns poucos centros econômicos, onde se concentra a maior parte dos postos de trabalho. Essa distribuição desigual entre local de moradia e local de trabalho consolida um padrão de mobilidade pendular, concentrado nos horários de pico, que somado à uma rede de transporte público insuficiente, produz a superlotação de ônibus, metrôs e trens cotidianamente, agravando o risco de contágio. Afastar-se de aglomerações se torna um grande desafio ou até mesmo algo inevitável para quem depende desses deslocamentos cotidianos.
Todo esse quadro é ainda agravado por processos sistemáticos de despejos e remoções em áreas de favelas e ocupações que aprofundam o cenário de insegurança habitacional. Por vezes, colocam as pessoas removidas em situação de maior precariedade do que aquela de origem, além da destruição das redes de solidariedade que, diante do fechamento das escolas e demais serviços sociais, se mostram ainda mais fundamentais para a manutenção da vida. Segundo dados do Observatório de Remoções, entre 2017 e 2019 mais de 31 mil famílias foram removidas na Região Metropolitana de São Paulo. Diante de uma crise declarada pandemia, é indispensável que esses processos sejam interrompidos
Porém, nem só as precariedades e faltas definem as condições de combate ao vírus presentes nas periferias. Considerando a diversidade das periferias e favelas, outras características podem ter resultado positivo no retardamento à difusão do vírus. Se por um lado há bairros periféricos, favelas e cortiços muito adensados, com superpopulação em casas e cômodos, por outro, existem periferias consolidadas com casas e quintais em lotes bem definidos, o que pode ajudar a diminuir a circulação do vírus sem condenar à total clausura seus moradores. Se a circulação pendular em trens e ônibus lotados é propícia ao contágio, as relações mais solidárias de vizinhança podem ser importantes para o amparo de idosos e o cuidado comunitário de crianças.
Diante das medidas que vêm sendo adotadas, a principal aposta para manter setores da economia funcionando tem sido o chamado home office, o trabalho à distância, realizado em casa. A ideia do home office, no entanto, possui alguns pressupostos básicos: o primeiro, de que o trabalho exercido possa ser realizado em casa e, sendo possível (como atividades de escritório, administrativas, de comunicação, mas também de costura, cozinha e outras), é preciso garantir que a pessoa possua a estrutura mínima que lhe permita desenvolver a atividade. Esta estrutura diz respeito não apenas às condições físicas e técnicas dentro de casa, mas também à infraestrutura urbana e de redes de comunicação e internet, por exemplo.
Em um país no qual quase metade da população ocupada atua na informalidade, sem registro e direitos trabalhistas, a proposta do home office parece uma realidade distante. Uma situação praticamente inviável para aqueles que sobrevivem do comércio informal, por exemplo. Ademais, as periferias e favelas são historicamente o local de moradia dos trabalhadores da base da pirâmide, onde se localizam atividades braçais, serviços domésticos e ligados a produção industrial, ou seja, atividades que não podem ser realizados em casa. Com isso, se reduz significativamente o número de trabalhadores que se enquadram na modalidade do trabalho remoto, sendo necessária a elaboração de outras estratégias que não passem apenas pelo home office.
Ainda não é possível estimar o tamanho do impacto do home office sobre as dinâmicas urbanas e sociais, mas considerando seu reflexo no aumento do uso de aplicativos de entrega de comida e compras e na redução de vendas do comércio ambulante, percebe-se que, mais uma vez, a base da pirâmide acaba impactada. Isso ocorre tanto pela superexposição de entregadores a situações de risco de contágio quanto por inviabilizar a continuidade do comércio informal em ruas esvaziadas pelas recomendações de restrição à circulação.
Ainda são muitas as incertezas e especulações de como a disseminação do coronavírus irá impactar as cidades brasileiras, seus diferentes e desiguais territórios e populações. Por isso, a única certeza que temos é que as medidas para garantir equidade e proteção para todos e todas precisam responder às diferenças encontradas entre os territórios e grupos sociais que os ocupam.
O LabCidade fará, nas próximas semanas, uma série de análises para discutir o Coronavírus e as cidades. Acompanhe também a cobertura CoronaVírus na Periferia.
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