Aluízio Marino, Fernanda Accioly Moreira, Larissa Lacerda e Raquel Rolnik*
Desde o ano passado vem sendo veiculadas reportagens com denúncias relativas a presença do “crime organizado”, e particularmente do Primeiro Comando da Capital (PCC), na produção e controle de loteamentos irregulares nas periferias da Região Metropolitana de São Paulo, especialmente em áreas de proteção ambiental. A estas se somaram inquéritos e prisões, que desde o incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida no centro de São Paulo também construíram a narrativa de que ocupações são uma nova fonte de recursos do “crime organizado”.
A complexidade do funcionamento dos mercados de imóveis em São Paulo contrasta com a fragilidade das narrativas difundidas, permeadas de equívocos e generalizações. A começar por apresentar um fenômeno – a existência de mercados “paralelos” de moradia em São Paulo – sem mencionar a causa fundamental – os processos de banimento e negação de direitos a que foram e são submetidas indivíduos e famílias que, sem acesso à políticas habitacionais ou reconhecimento dos vínculos com o território que ocupam, alimentam historicamente mercados fora das normas, nas fronteiras entre o legal e o ilegal.
Para começar, a prática de abertura de loteamentos irregulares, clandestinos ou ilegais, não é nenhuma novidade na metrópole paulistana. Pelo contrário: a ocupação extensiva e acelerada sobre glebas rurais ou ambientalmente protegidas com restrições ao loteamento nos extremos da mancha urbana são a forma histórica como se deu o processo de urbanização da metrópole há pelo menos meio século. Este mercado imobiliário “fora das normas”, extremamente dinâmico, foi capaz não só de gerar prosperidade e riqueza para os agentes envolvidos, como também sempre se desenvolveu em diálogo com agentes do Estado, principalmente através do poder público local, seja via administrações regionais ou subprefeituras seja via mandatos parlamentares. A exploração deste negócio – econômico mas também político-eleitoral – é inclusive uma das bases da atual configuração política da metrópole onde verdadeiras dinastias controlam o território e, consequentemente, a política.
O mapa 1 ilustra essa realidade na capital em 2016. Dados oficiais da prefeitura identificavam na época quase dois mil loteamentos irregulares, com aproximadamente 390 mil lotes estimados pela Secretaria Municipal de Habitação. O panorama dos demais municípios da Região Metropolitana não é diferente; entretanto, não existem dados abertos que identifiquem e quantifiquem o fenômeno na escala da metrópole.
Se a existência de um mercado imobiliário paralelo pujante não é nenhuma novidade, seria o emprego da violência – identificado de forma simplista com o crime organizado – o elemento novo? A década de 1990 é reconhecida pelo aumento crescente da violência nos territórios populares. “Chefões’, “xerifes”, “valentões”, “justiceiros” não são apenas denominações ligadas a personagens do mundo do crime, mas à expansão de um repertório e de uma linguagem de mediação e organização social que foi ganhando novos contornos, envolvendo tanto policiais quanto não policiais no exercício da manutenção de uma nova ordem nas periferias. A presença do PCC neste processo é, sem dúvida, central. Como apontado por uma literatura já produzida sobre esta organização, é fundamental compreender sua especificidade: com estrutura descentralizada, opera como uma sociedade secreta – até comparada por parte de alguns estudos à maçonaria – em que os “irmãos” possuem certa autonomia em seus negócios particulares, ou “corres”. Parte destes negócios é o que se denominou nas últimas décadas de “empreendedorismo popular“; em função da reestruturação produtiva e do esgotamento da forma assalariada como modo de inserção e de integração dos “trabalhadores”, são práticas que se valem da expansão dos mercados (legais e ilegais) populares, em arranjos que se somam e se embaralham ao trabalho precário, formas locais de sobrevivência e práticas ilícitas.
Isso quer dizer que é preciso ser mais cauteloso antes de afirmar que, se existem indivíduos com ligações com o PCC em loteamentos irregulares ou ocupações, então os recursos provenientes das transações imobiliárias estão sendo centralizados pela facção como uma nova frente de extração de renda. Por isso, antes de afirmar categoricamente que a facção controla o mercado ilegal da terra, é urgente entender os contornos dos atuais conflitos fundiários e a violência estrutural nos territórios populares – inclusive a violência praticada pelo Estado – com e sem PCC.
A consequência de narrativas que reduzem e achatam processos tão variados, ignorando a própria história da produção do espaço urbano da RMSP, fortalece e legitima o discurso que classifica toda e qualquer forma de existência na cidade que não é a propriedade privada individual registrada como “criminosa” – o que tem valido tanto para aquelas praticadas pelas maiorias silenciosas quanto para as promovidas por movimentos sociais organizados como estratégia de sobrevivência e acolhimento dos banidos, mas também como ato político. Ademais, também contribui para a manutenção de um enorme silêncio sobre a perpetuação e perversidade das relações de poder na metrópole, que dependeram e continuam dependendo da expansão deste modelo.
Finalmente, como já afirmamos no início deste texto, o que é possível afirmar com certeza é que, se até hoje há um intenso mercado imobiliário popular onde atuam agentes variados, inclusive estatais, permeado por atos e transações ilegais e cada vez mais pela violência, é porque o Estado falha na promoção de um modelo de cidade que responda às necessidades da população. Para que seja possível atuar de forma efetiva no combate à práticas criminosas e violentas na produção e gestão dos espaços da cidade, é preciso que se compreenda suas causas, a trama e atores envolvidos, as diferentes formas que assumem e as dinâmicas urbanas que são engendradas em toda sua complexidade. Inventar culpados, como sempre, ajuda a construir a cortina de fumaça para manter tudo como está.
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