Por Aluízio Marino, Raquel Rolnik e Thiago Godoi Calil – ‘Thika’*
A Prefeitura de São Paulo pretende desativar os últimos hotéis do centro que abrigam pessoas que usam drogas atendidas pelo programa “De Braços Abertos”, em franca extinção desde 2017. O programa adotava uma perspectiva de redução de danos em relação ao tratamento dessas pessoas e absorvia – em parte – as políticas do Housing First, iniciativa canadense, disseminada hoje em muitos outros lugares do mundo, que compreende a moradia como elemento principal no atendimento à população em situação de rua. Embora necessitasse de aperfeiçoamento em várias de suas dimensões, o programa representou um avanço no campo das políticas públicas sobre drogas na medida em que procurava ir além da trio repressão/internação/ prisão que marcam historicamente as políticas brasileiras em relação às drogas.
Nas cidades, impera a invisibilidade dos sujeitos que usam drogas – principalmente aqueles que estão em situação de extrema vulnerabilidade. A criminalização do tema faz com que as questões relacionadas ao uso de drogas sejam tratadas de forma simplista: como um “problema de polícia” e de confinamento dos envolvidos, constituindo uma verdadeira guerra, que não é contra as substâncias, mas sim contra pessoas . Estima-se no Brasil que a “guerra às drogas” mata pelo menos 30 mil pessoas por ano, em sua maioria jovens, pobres, negros e negras, moradores das favelas e periferias metropolitanas. Os sobreviventes superlotam os cárceres, 27% dos quase 600 mil presos são processados ou condenados por “tráfico” de drogas. Entre as mulheres, essa proporção chega à metade.
A presença do comércio e consumo de drogas em determinados territórios – associada, ou não, a outras atividades consideradas ilícitas, como prostituição, venda de objetos roubados, transporte clandestino e moradias informais – legitima e justifica que projetos de renovação urbana sejam implantados na marra, inclusive com o uso ostensivo de violência.
Para além das favelas e periferias – onde o tema do combate ao tráfico assumiu a centralidade da atuação pública, ofuscando as demais dimensões da vida e da urbanidade – dois exemplos recentes desse tipo de intervenção urbana localizadas em áreas centrais são os casos do “Bronx”, na cidade de Bogotá, Colômbia; e da “Cracolândia”, na cidade de São Paulo. Em 28 de maio 2016, a prefeitura de Bogotá, por meio de ação policial repressiva, expulsou cerca de 600 pessoas que viviam em uma zona de aproximadamente dois quarteirões do centro da cidade, área conhecida como Bronx, e quase a totalidade dos prédios foram demolidos. Um ano depois em São Paulo, no dia 21 de maio de 2017, quase mil oficiais das polícias civil e militar, em operação também de caráter repressivo, removeram pelo menos 500 pessoas de um quarteirão dos Campos Elíseos, bairro central onde se localiza o ‘fluxo’, concentração de pessoas que fazem uso de crack conhecido como ‘Cracolândia.’
Em Bogotá, as pessoas espalharam-se pela cidade. Em São Paulo, o fluxo moveu-se para duas quadras ao lado – para um mês depois voltar ao local de origem. De forma simples e clara, em ambas situações, os projetos urbanísticos de renovação removeram centenas de pessoas de forma violenta, piorando a situação de vulnerabilidade em que se encontravam. Em Bogotá, muitas pessoas se refugiaram em canais. Em São Paulo, verificou-se o aumento das “mini-cracolândias”, ou seja, a dispersão de pequenos fluxos de uso de drogas na cidade.
Além das inúmeras violências materiais e imateriais, a perspectiva da renovação urbana ignora os sujeitos e as dinâmicas existentes num território definido como zona de guerra e portanto lugar sem vida,habitado por sujeitos matáveis, configurando um vazio que precisa ser “revitalizado”. Essas intervenções passam por cima de grupos sociais em condições de vulnerabilidade ocupantes desses locais: pessoas em situação de rua, pessoas que usam drogas, profissionais do sexo, transexuais, carroceiros, trabalhadores pobres que residem em pensões, cortiços, ocupações e outras formas precárias de moradia.
Em Bogotá e São Paulo a política urbana aliada a guerra às drogas vem transformando o território mas as obras implantadas e as melhorias realizadas não atendem às pessoas que habitavam – ou que ainda habitam os lugares. Em ambas as cidades é possível verificar que os empreendimentos habitacionais construídos possuem critérios e exigências para compra que excluem essa população; os espaços públicos – praças, parques, calçadas, ruas – são cercados, com barreiras físicas (grades, portões e muros) e simbólicas (presença de seguranças privados, regras e horários de funcionamento excludentes) que impedem o acesso e a estada dos que antes os ocupavam.
Ou seja, em ambos os contextos não foi prestado atendimento digno aos sujeitos deslocados ou impactados. Em especial, as pessoas em situação de rua e usuárias de drogas. Expulsas nessas situações tornam-se refugiados urbanos que se deslocam pelas ruas em situação de transitoriedade, à mercê da violência policial e dos abusos de grupos armados ilegais.
Essa união macabra entre a política urbana e a guerra às drogas, é também uma união entre o legal e o ilegal, entre o “massacre e a burocracia”, ou seja, a serialização de mecanismos técnicos (reintegrações de posse, internações forçadas, apreensões) para conduzir as pessoas a condições-limite, inclusive a morte. Tais mecanismos são reforçados por estereótipos racistas e classistas, que enquadram sujeitos vulneráveis como “traficantes”, “noias”, “vagabundos” e por isso, matáveis ou descartáveis. Uma faceta do que Achille Mbembe** compreende como “necropolítica”. Relações contraditórias entre o Estado e grupos armados (milícias urbanas, facções, paramilitares, exércitos privados) que controlam o comércio da droga delimitando territórios como “mundos da morte, […] nos quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o status de mortos-vivos”.
Obviamente esse não é um posicionamento a favor da manutenção das precariedades e vulnerabilidades presentes em contextos de uso abusivo de drogas no espaço público. O tema da presença das drogas nas cidades é complexo e multidimensional e merece ser tratado desta forma. Trata-se da defesa de políticas que articulem a luta pelo direito à cidade e a luta anti-proibicionista, mobilizando práticas, atores e repertórios capazes de atuar com os sujeitos, mediar os conflitos existentes e, acima de tudo, respeitar os cidadãos que habitam, trabalham e circulam nesses territórios.
** MBEMBE, Achile. Necropolítica. Revista do PPGAV/EBA/UFRJ. N. 32. 2016. PP 124-151.
*Aluízio Marino é doutorando na UFABC e pesquisador do LabCidade; Raquel Rolnik é urbanista, professora da USP e coordenadora do LabCidade; Thiago Godoi Calil – ‘Thika’. psicólogo, redutor de danos e doutorando em Saúde Pública pela USP. O texto foi publicado originalmente no site Uol.
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