Por Letícia Lindenberg Lemos*

01_driverlesscar
Crédito: Günter Radtke

Recentemente algumas empresas viabilizaram um carro completamente automatizado – com sistemas internos que permitem que o veículo circule de forma autônoma, ou seja, sem motorista humano – e isso tem sido indicado como o “futuro da mobilidade”.

Um carro, com ou sem essa tecnologia, ser vendido com esse “selo” de futuro não é novidade, o automóvel se consagrou nas cidades portando a ideia da modernidade. Mas eu seriamente espero que esse não seja, de fato, o futuro da mobilidade. Não por achar que esse futuro, no qual a mobilidade urbana seria solucionada com carros sem motoristas humanos, seja totalmente impossível, afinal de contas é imaginável que o futuro de algumas das nossas cidades inclua amplamente essa solução, mas por acreditar que a mobilidade urbana, e com isso o futuro das nossas cidades, está sendo tratada de uma maneira míope.

Essa visão de futuro, centrada nessa solução técnica, está muito ligada ao conceito de mobilidade sob demanda, ou seja, as pessoas teriam um carro somente quando precisassem, usando, por exemplo, sistemas de compartilhamento, como o Zazcar ou Uber. Esses sistemas buscam resolver alguns problemas contemporâneos da mobilidade urbana, como o custo de ter um automóvel ou a necessidade de reduzir o consumo de recursos naturais – um carro compartilhado substituiria alguns carros privados. Assim, empresas como o Uber usaram tecnologia para transformar os serviços de transporte individual de passageiros (os táxis), inclusive permitindo o compartilhamento de viagens.

Outros problemas, como emissão de gases de efeito estufa, são abordados através da proposta de mudança da matriz energética, de combustíveis fósseis para energia elétrica. No entanto, além de depender de tecnologia local para garantir o baixo impacto ambiental – energia produzida com queima de carvão, particularmente sem o uso de filtros adequados, por exemplo, gera um alto impacto ambiental –, esses veículos continuam sendo carros, ocupando o espaço de circulação que hoje é ocupado por carros, causando congestionamento nas cidades, e sendo uma solução individual para um problema coletivo.

Eu acredito em outra visão de mobilidade urbana. Ela pode (e deve) ser tratada como algo mais amplo, mais do que o mero deslocamento na cidade, ou somente uma conexão entre dois pontos. Ela deve ser tratada como algo que ocorre no espaço público e que deve também dialogar com ele. Por isso, definir uma solução técnica singular, que resolve a mobilidade individual, mas não a coletiva, como “futuro da mobilidade”, é também relegar o espaço público a um mero local de circulação, de conexão entre dois pontos.

Acredito também em outra visão de espaço público, acredito que ele é mais do que um espaço de circulação. O espaço público não foi socialmente construído para dar suporte ao deslocamento. Mas o deslocamento, de pessoas, coisas ou mesmo de informação, é uma das atividades que ocorrem no nele. Ele é, na verdade, o suporte das nossas relações sociais.

Além disso, inovações tecnológicas em contextos de ampla desigualdade social tendem a reforçar esse quadro. Lee Vinsel, professor assistente de estudos em Ciência e Tecnologia da Stevens Institute of Technology, nos Estados Unidos, comenta o tema da inovação tecnológica da seguinte maneira: “Em uma cultura na qual esquecemos questões como infraestrutura decadente e desigualdade de renda, essas narrativas sobre mudanças tecnológicas podem ser muito perigosas”. Isso é especialmente importante na realidade de um país de capitalismo periférico, como o Brasil, onde uma inovação como essa reforçaria ainda mais a segregação socioespacial que já é tão marcante.

Nesse contexto, o automóvel não é somente uma solução individual, mas é também para poucos. A pesquisa Origem e Destino (OD) do Metrô mostra uma característica, que é constante pelo mundo: o uso do carro cresce com a renda. Ou seja, quanto menor a renda, menos o carro é usado, como demonstra o gráfico abaixo.

carro_renda_metro
Relação entre renda familiar e uso do automóvel – Fonte: Pesquisa OD 2007

 

Assim, apesar de São Paulo ter uma quantidade de carros por habitante maior do que cidades norte-americanas como Chicago ou Detroit, essa frota não está distribuída de forma homogênea no território, mas concentrada nos bairros com renda mais alta, como mostra o mapa abaixo. Apesar dos dados desse mapa serem de 2007, esse padrão se manteve na Pesquisa de Mobilidade, realizada também pelo Metrô em 2012.

auto_pop
Distribuição de automóveis por habitante por zonas OD – Elaborado a partir de dados da Pesquisa OD 2007

E apesar de ser “para poucos”, esses poucos causam um problema sério de congestionamento. Eduardo Vasconcellos mostrou, em seu livro em 2013, que nos momentos de congestionamento em São Paulo, pelo qual a cidade é notória, somente 15% da frota está nas ruas.

Ainda, algumas pessoas têm a opção de ter um carro, mas preferem outros meios de transporte, como muitos integrantes de organizações e movimentos sociais ligados ao tema da mobilidade ativa. Mas a maioria dos paulistanos não tem essa opção, são usuários cativos do transporte público, ou seja, usam esses modos por falta de opção.

E além de não ser uma solução viável para a mobilidade de todos, também piora as condições do espaço público. Vale citar poluição ambiental e sonora e mesmo o número de mortes, especialmente quando não são adotadas políticas que prezam pela vida, como a redução da velocidade de circulação das vias, recentemente intensificada pela gestão da cidade de São Paulo.

Outro impacto menos aparente, mas muito relevante, foi demonstrado no começo da década de 1980 por Donald Appleyard, urbanista inglês radicado nos Estados Unidos. Ele mostrou que uma quantidade excessiva de automóveis circulando causa impactos psicológicos, afastando as pessoas das ruas. Assim, quanto mais carros transitando, menor é a vitalidade das ruas, algo que contribui para a degradação do espaço público, como Jane Jacobs, escritora e ativista política nascida nos Estados Unidos, já havia mostrado na década de 1960. Ou seja, promover uma solução individual para um problema que é coletivo é, também, relegar as pessoas socialmente mais vulneráveis a um espaço público degradado.

O problema do automóvel não é o automóvel. Quem pensa mobilidade urbana já ouviu muito isso. Mas é verdade. O problema do automóvel não é ele, mas transformá-lo na grande solução para a mobilidade urbana, para o “futuro da mobilidade”. É preciso deixar de lado a ideia de que o automóvel é essencial para a mobilidade urbana. O que o torna aparentemente essencial, e isso somente para alguns, importante frisar novamente, é o modelo adotado historicamente como política pública, que favoreceu e continua favorecendo esse meio de transporte em detrimento dos outros.

Se quisermos uma cidade mais integrada, uma cidade mais viva, mais humana ou mesmo uma cidade mais viável, dentre diversos possíveis adjetivos, não podemos mais pensar no espaço público somente como local de circulação. Devemos olhar para ele como suporte das nossas relações sociais, considerando todo o seu potencial social. A apropriação das ruas como espaço de lazer – como tem ocorrido na Avenida Paulista, no Centro, ou no Jardim Peri, na Zona Norte de São Paulo – vai ao encontro disso, mostra que uma parte da sociedade já percebeu que a rua não é só para circular.

Letícia Lindenberg Lemos é arquiteta urbanista e mestranda na FAU-USP. Tem especialização em mobilidade ativa pela United Nations Institute for Training and Research e faz parte da equipe do observaSP.