Guilherme Lobo Pecoral, Renato Abramowicz Santos, Débora Ungaretti, Aluízio Marino, Raquel Rolnik, Júlia de Sá, Benedito Barbosa*
Entre abril e outubro de 2022, muitas remoções foram suspensas, principalmente pela mobilização de movimentos de moradia, coletivos, entidades e grupos de pesquisa organizados na Campanha Despejo Zero, que conseguiram incidir na criação, manutenção e prorrogação da ADPF 828, que proibia os despejos durante a pandemia. A decisão do Supremo Tribunal Federal vigorou de junho de 2021 até 31 de outubro de 2022, garantindo a permanência de milhares de famílias ameaçadas de remoção, o que impediu que elas fossem postas na rua por viverem em locais onde a posse era contestada por outrem. Embora a cobertura e a proteção da ADPF estivessem vigorando entre o período de abril a outubro deste ano, nosso mapeamento registrou que ameaças e remoções ainda continuaram ocorrendo na Região Metropolitana de São Paulo, como já havíamos assinalado em levantamentos anteriores produzidos pelo Observatório de Remoções.
No dia 31 de outubro, o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luís Roberto Barroso, ao decidir pela não prorrogação da medida, estabeleceu um regime de transição para retomada das ações de despejos e remoções, decisão que foi posteriormente referendada pelo plenário do STF. Segundo este regime de transição, as desocupações de imóveis em ação de despejos (em sua maioria, por falta de pagamento de aluguel) podem ser retomadas de forma imediata. Já as ações judiciais que envolvem remoções deverão seguir dois protocolos: (i) passar por comissões de conflitos fundiários a serem criadas pelos Tribunais de Justiça e pelos Tribunais Regionais Federais, que irão dar apoio operacional aos juízes para retomada da execução de decisões suspensas de maneira gradual e escalonada; e (ii) antes do cumprimento da ordem de desocupação, deverão ser realizadas, por essas comissões, inspeções judiciais e audiências de mediação – com participação do Ministério Público e da Defensoria Pública, e por órgãos públicos de política agrária e urbana.
As medidas administrativas, que levarem a remoções neste período de transição, deverão seguir três protocolos: (i) os representantes das comunidades deverão ser informados da remoção, e ouvidos; (ii) as remoções deverão acontecer com “prazo mínimo razoável”; e (iii) as pessoas “em situação de vulnerabilidade social” deverão ter o encaminhamento para abrigos públicos garantidos, sem separação dos membros de uma mesma família, ou deverão ter garantidas outras formas de moradia.
O fim da suspensão automaticamente colocou em risco milhares de famílias que estavam com sua moradia protegida pela medida. Ao menos 43 remoções foram suspensas desde o início da pandemia na Região Metropolitana de São Paulo, ameaçando ao menos 9.403 famílias, que agora com a nova decisão do STF voltam ao risco iminente de perder suas casas.
Nem bem o período de transição estipulado pelo ministro iniciou, já detectamos o descumprimento dessas condições por parte de juízes, desembargadores, e agentes da administração pública. Foi o caso, por exemplo, da Ocupação Jorge Hereda, em que, em primeira instância, foi determinada a remoção das cerca de 3.000 famílias moradoras, alegando que a decisão do STF autoriza a retomada da reintegração de posse. Na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, a realização de mediação e audiência prévias à remoção foram dispensadas, uma vez que já teria havido mediação da Polícia Militar, o que cumpriria o requisito. Porém, não é isto que foi determinado pelo STF para o período de transição, que entre outras condições determina a realização de audiências de mediação em que as pessoas ameaçadas possam participar e ser ouvidas, entre outros elementos. Graças à atuação da advocacia popular, uma nova suspensão de remoção pelo TJSP foi conquistada.
Diante das questões práticas e ameaças presentes nessa nova conjuntura, a Campanha Despejo Zero está trabalhando para que o Conselho Nacional de Justiça e os tribunais estabeleçam diretrizes específicas para a adoção das regras determinadas pelo STF, sob risco de que a decisão passe a ser mobilizada, como já vem ocorrendo, para justificar remoções arbitrárias ou ainda cada Tribunal Regional Federal ou nos Estados tenha um entendimento diferente sobre a aplicação das condicionantes.
Atualização do mapeamento colaborativo das remoções
Entre abril e outubro de 2022, o Observatório de Remoções registrou nove remoções na Região Metropolitana de São Paulo, que atingiram ao menos 668 famílias – em seis desses casos, não obtivemos o número de pessoas removidas. O risco foi mobilizado como justificativa em três casos, fator muito mobilizado durante a pandemia devido à brecha da decisão do STF; em dois deles, as remoções aconteceram em função de obras públicas. Proteção ambiental, combate ao tráfico, conflito de posse e zeladoria urbana também levaram a remoções, tendo sido a maioria delas realizadas por meio de processos de reintegração de posse e quatro remoções extrajudiciais. Embora seja uma quantidade menor no número de remoções em relação aos períodos anteriores de nossos mapeamentos – o que reflete o sucesso das mobilizações de resistência, das campanhas pela suspensão de remoções e de decisões jurídicas que garantiram a proteção do direito à moradia durante a pandemia – a quantidade de famílias removidas (668) é próxima do que vínhamos registrando, revelando a persistência da gravidade das remoções mesmo sob a vigência da ADPF 828.
Foram registradas também 20 novas ameaças de remoção, além de 4 atualizações sobre ameaças anteriores, totalizando o número dramático de ao menos 4.604 famílias ameaçadas no período. Os números são ainda mais desoladores, pois em 10 casos não tivemos a informação da quantidade de famílias ameaçadas. Alguns dos meios empregados em ameaças, em ações de repressão, em visitas de agentes a ocupações, ou mesmo no cumprimento de remoções foram: utilização de bombas de efeito moral e balas de borracha contra moradores; bloqueio da entrada das moradias pela GCM; e o corte de fornecimento de água por determinação administrativa.
Para além do município de São Paulo, nosso mapeamento registrou também ameaças e remoções em Carapicuíba, São Bernardo do Campo, Mauá, Santo André, Cajamar, Mogi das Cruzes e Guarulhos. Em Carapicuíba, ocorreu uma das remoções mais expressivas do período, na chamada Vila Municipal, bairro instalado há mais de 40 anos, onde cerca de 406 famílias foram desabrigadas de forma violenta, a pedido da Prefeitura, ocorrendo inclusive a detenção de uma das lideranças. A justificativa alegada foi “área de risco’’, mas também há a previsão de implementação de obras públicas no terreno para a construção do chamado corredor Itapevi-São Paulo.
É importante destacar que os meses cobertos por este mapeamento incluíram o período eleitoral. Acreditamos que as eleições podem ter contribuído para a queda nos números gerais dos casos de remoção (mesmo que o número de pessoas atingidas tenha se mantido) já que os diversos atores sociais estavam fortemente envolvidos nas disputas eleitorais. Já verificamos dinâmica semelhante em períodos anteriores.
Em suma, o último período registrado pelo Observatório de Remoções seguiu a tendência da pandemia, em que ameaças, remoções e violências persistiram, com velhas e novas estratégias para driblar as normas de proteção das comunidades, ao mesmo tempo em que inúmeras famílias foram protegidas por suspensões fruto de sua mobilização e da decisão do STF. Os caminhos que se delineiam no momento são dois: uma tendência de liberação irrestrita – uma espécie de “passar a boiada” – das remoções e despejos; e um esforço de organizar e mediar as situações e conflitos por meio da elaboração e reforço de institucionalidades, trâmites, instâncias e arenas de mediação e negociação. É neste contexto que se insere também a iniciativa puxada pela Campanha Despejo Zero: Natal Sem Despejo. No dia 07 de dezembro, atos em todo o país irão reivindicar a suspensão das remoções no período das festas de fim de ano.
Vale ainda mencionar que as transições de governo, especialmente no âmbito federal que marca também esforços de refundação e reconstrução do país, surgem como uma possibilidade e oportunidade relevantes para que temas como o direito à moradia digna e o fim da violência das remoções tenham espaço, incidência e sejam pensados com toda seriedade e importância que merecem.
* Pesquisadoras e pesquisadores do Observatório de Remoções
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