Simone Gatti*
Paula Freire Santoro**
Há cerca de dois meses a Prefeitura de São Paulo apresentou o Projeto de Intervenção Urbana – PIU Setor Central para consulta pública, já encerrada. Atualmente o PIU está sendo debatido junto à Comissão Executiva da Operação Urbana Centro, uma vez que o projeto surgiu a partir da necessidade de revisão da própria operação, esperada desde a aprovação do Estatuto da Cidade (2001). Considerando as alterações urbanísticas propostas, provavelmente o PIU será transformado em um projeto de lei e enviado à Câmara de Vereadores, onde novos debates deverão acontecer. A depender da forma como o PIU Setor Central for regulado, a atual Operação Urbana Centro pode deixar de existir, ter seu perímetro reformulado ou funcionar sob novas regras.
Sobre o mesmo perímetro do PIU Setor Central há outros PIUs propostos, como o PIU Terminal Princesa Isabel, e outros projetos de iniciativa da prefeitura municipal, como o Projeto Redenção, além dos inúmeros projetos de requalificação de espaços públicos e de uma PPP Habitacional. Entretanto, não está clara a relação entre eles. Esse é um dos quase 40 PIUs em desenvolvimento pela gestão municipal e, como já comentado por aqui, esse tipo de projeto tem funcionado como um dispositivo de concessão da cidade.
Diversas diretrizes apontadas pelo PIU Setor Central, ainda vagas e genéricas, merecem debates aprofundados, como a alteração dos critérios para a Transferência de Potencial Construtivo e as propostas de mobilidade urbana ou de novas formas de governança da transformação pretendida. Mas, aqui, nos debruçaremos sobre a questão habitacional. O projeto parece ignorar o quadro diverso de precariedade habitacional ao concentrar propostas que reiteram a política atualmente em curso, privilegiando a produção de novas unidades sobre grandes terrenos, alguns inclusive imóveis públicos, e empreendimentos de padrão nada popular, com preços por m² muito altos e unidades pequenas, voltadas para um público com renda mais alta e não para quem efetivamente habita hoje o Centro e precisa de moradia.
A Operação Urbana Centro estimulava qualquer forma de produção habitacional nessa região da cidade, onde o mercado imobiliário não pagaria pelos direitos de construir utilizados em empreendimentos residenciais aprovados dentro do seu perímetro. O objetivo era inverter o processo de perda de população em curso nos anos 1990/2000. A década de 2010 mostrou que este processo está sendo revertido, com o adensamento das situações precárias de moradia e com produção de novas unidades habitacionais pelo mercado de classe média, sendo esta última a produção que transformou a região da Sé em uma das mais caras da cidade para aquisição de imóveis novos, segundo informe da Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento (SMUL). Nesses empreendimentos, a densidade construtiva chega a 6,5 vezes a área do lote, mais que o permitido em toda a cidade, que é de 4. São apartamentos pequenos, com cerca de 41 m², um ou dois dormitórios e muitos deles apresentados como forma de investimento e não voltados primordialmente à moradia de quem os adquire.
O mercado imobiliário tem recebido incentivos para construir unidades que não vão atender o diverso quadro de necessidades habitacionais! O número de unidades em cortiços continua a crescer, bem como edifícios sendo ocupados por movimentos de moradia, em função da falta de políticas públicas voltadas para a população de menor renda. São cerca de 80 mil domicílios em cortiços na cidade, a maior parte deles localizados no Centro, e mais de 4 mil pessoas vivendo em edifícios ocupados na área central, com índices de adensamento excessivo e ônus com aluguel. Isso sem falar na população em situação de rua, que também deve ser atendida pela produção habitacional.
O PIU Setor Central propõe a criação de novas frentes de expansão do mercado imobiliário para o Vetor Norte – áreas localizadas entre a ferrovia e a Av. Marginal Tietê –, voltadas para a construção de novas unidades habitacionais, sem determinar que sejam habitação de interesse social. A escolha deste Vetor acaba por desviar a gestão pública das áreas antes tidas como estratégicas para a transformação: (1) as áreas marcadas para Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórias – PEUC, instrumento que pressiona proprietários dando um prazo para que o imóvel não permaneça vazio, subutilizado ou não utilizado; e (2) as áreas onde há reserva de terra para moradia popular, as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS 3, que exigem que mais da metade da produção habitacional seja habitação de interesse popular para famílias com faixas de renda inferiores a 3 salários mínimos.
Embora o PIU Setor Central tenha previsão de um “anel habitacional popular qualificado” não detalha como irá qualificar estas áreas, não articula a proposta com programas habitacionais específicos, nem incentivos ao mercado, nem recursos! Se a proposta seria priorizar a transformação nas áreas de ZEIS 3 – áreas subutilizadas ou vazias em área central onde prioritariamente se deve fazer habitação de interesse social –, como isso deverá acontecer? Inclusive, há poucos imóveis marcados com PEUC em ZEIS 3, pois muitos desses imóveis, por estarem ocupados, são considerados como “em uso”.
O PIU Setor Central também desenha os perímetros de transformação, como por exemplo o Vetor Norte, sobre imóveis públicos, que devem passar a compor parcerias público-privadas habitacionais. Assim, configura-se mais um um grande incentivo à PPP Habitacional como “modelo único” de política, justamente aquela que é baseada na construção de novas unidades destinadas à propriedade privada.
Considerando que as áreas são públicas, elas deveriam atender prioritariamente ao diversos quadros de precariedade habitacional encontrados e as famílias com faixas de renda que compõem a maior parte do déficit habitacional (79,4% do déficit está concentrado nas famílias de 0 a 3 s.m.), qual deveria ser a regulação urbana para que o interesse público fosse contemplado, e não apenas a lógicas imobiliária-financeira? Os incentivos em direitos de construir, a disponibilização de terras públicas e os recursos, hoje, passam longe dos mais vulneráveis, que são os que efetivamente precisam de investimento via políticas públicas urbanas e habitacionais.
* Simone Gatti é pós-doutoranda e professora convidada da FAU USP. Atua como pesquisadora do Observatório de Remoções e do NAPPLAC-USP e representa o IABsp na Comissão Executiva da Operação Urbana Centro.
** Paula Freire Santoro é arquiteta e urbanista, professora de Planejamento Urbano do Departamento de Projeto da FAU USP. Atualmente coordena o projeto ObservaSP no LabCidade FAU USP. Lattes | Academia.edu
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